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Arquivo Mensal outubro 2010

Dr. Helvécio Miranda Magalhães Júnior

1) Como foi a sua experiência, como gestor, tendo a APS como orientadora do sistema?
Considero que nossa experiência em Belo Horizonte na organização da rede municipal de saúde, articulada sob comando único da gestão municipal, teve a grande marca de ter claramente colocado a APS como o centro dessa rede nos diversos territórios. Radicalizamos o conceito de muitos anos de territorialização ancorada em Unidades Básicas de Saúde, com a implantação do formato organizacional da Saúde da Família na APS, que tem princípios, conceitos e práticas que facilitam o papel de centro e gestor da rede integral de atenção. Essa experiência vigorosa em um grande município deve servir de estímulo ao conjunto do País.
2) Em recente lançamento do livro “Desafios e Inovações na Gestão do SUS”, em Belo Horizonte, o senhor sugere a construção de um modelo descentralizado com foco na atenção primária. Como funciona esse modelo?
O modelo a que me refiro é exatamente aquele que citei na primeira pergunta. Organizar todo o sistema municipal de saúde em camadas territoriais baseadas em centros de APS, cujas equipes potencializadas por suporte logístico e organizacional se transformam progressivamente em cuidadores diretos de determinada população e gestores do cuidado ao longo do tempo e da vida, independentemente de onde esse cuidado for prestado e, ainda, articulando atenção e promoção. Esse cuidado será feito onde estão os diversos pontos de atenção de apoio de urgência, de especialidades, de saúde mental, de apoio diagnóstico, de atenção hospitalar etc. Essa verdadeira rede territorializada é certamente descentralizada pela dimensão do município e temática, de acordo com as necessidades de saúde detectadas. E mais, as equipes da APS, gestores definitivos do cuidado integral, têm que zelar pela prestação, independentemente de onde ocorra, munidos de um sistema de informação inteligente e potente para dar essa condição de responsabilidade às equipes.
3) Um dos problemas para o fortalecimento da atenção primária está na contratação de profissionais, principalmente médicos. Como solucionar essa questão?
Sendo a APS o centro das redes, além de fortalecida e ampliada, ela ainda tem enormes desafios no País. Talvez os maiores deles sejam a captação, a fixação e a satisfação dos profissionais médicos. E não por serem mais ou menos importantes do que os demais profissionais. É porque são hoje um recurso escasso no Brasil, exatamente pela enorme demanda gerada pelo próprio crescimento do SUS nos últimos anos. Temos que ter mais médicos disponíveis ao sistema, em especial à APS, fixados e transferidos com o seu objeto de trabalho e, fundamentalmente, satisfeitos e vendo sentido no que fazem. É um problema de difícil solução, que não comporta mágicas, mas que precisa ser enfrentado. Inclusive, proponho um grande pacto nacional com a própria categoria médica, em defesa do SUS e por uma nova APS: mais profissionais ofertados, serviço civil obrigatório, mais cursos públicos e privados de medicina com qualidade e vinculados ao SUS, regulação profissional do Estado subordinada ao interesse público, carreiras estimulantes, concursos públicos democráticos, proteção contra perseguições políticas, respeito e reconhecimento profissional, ambientes de trabalho dignos e estimulantes, educação permanente, telessaúde, apoio psicológico integral, enfrentamento da solidão e condição para trabalho em equipe, que são temas de uma sofisticada agenda para os próximos tempos no País. Sem subestimar o problema, sou confiante em podermos resolvê-lo. Já fizemos coisas mais difíceis neste SUS.
4) No discurso de posse do Conasems, em 2007, o senhor reforçou a importância de maiores investimentos na APS. O Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, também ressaltou essa necessidade no XXVI Congresso de Secretarias Municipais da Saúde. De lá para cá houve algum avanço nesse sentido?
Felizmente tivemos nos últimos anos crescente investimento na APS por parte do MS, dos Estados e, especialmente, dos municípios. Mas considero ainda pouco. Minha proposta é utilizar no mínimo 70% de todos os novos recursos que vierem para a saúde com a APS, aí incluídas as ações de promoção à saúde. Defendo uma blindagem orçamentária para a atenção primária e suas redes. E os outros 30% para suprir topicamente pontos de atenção de especialidades, urgências e atenção hospitalar no conceito de rede centrada na APS. É preciso um ciclo virtuoso de investimentos e monitoramento rigoroso da atenção primária no Brasil. Uma espécie de cruzada nacional pela APS, com estabelecimento de um patamar mínimo de acesso, cuidado e qualidade a que todos os brasileiros terão direito, independentemente de onde morarem. Essa é nova marca da cidadania em saúde, cumprindo os princípios constitucionais e avançando na igualdade.
5) A Estratégia Saúde da Família obteve importantes investimentos em infraestrutura de serviços de APS no recém-lançado Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2). A que se deve essa conquista?
Terem sido colocadas no PAC 2 mais de 8.000 Unidades Básicas de Saúde é a demonstração que o caminho que proponho é possível. Falta muito dinheiro ainda para uma saúde minimamente razoável, mas, se existe uma chance, é a de começar a investir pela APS. E mais, o PAC 2 Comunidade Cidadã traz a novidade dos milhares de creches, vitais para a redução da mortalidade infantil e para o futuro da educação e, por derivação, também para a saúde dos futuros adultos, a Praça do PAC, que é a expressão da intersetorialidade tanto defendida pela saúde e os investimentos em esportes. E ainda tem as 500 Upas, que devem compor a rede de suporte à APS como ponto de atenção contínua ou não terão muita eficácia. Ou seja, passou despercebido, até da própria propaganda oficial do governo federal, que o PAC 2 é um ousado passo em cumprir a Constituição Federal no seu capítulo da Saúde. O próximo governo certamente continuará esse caminho que os municípios já vêm seguindo há tanto tempo.
6) O fortalecimento da atenção primária passa pelos municípios que aderem a sua implantação. O que julga necessário fazer para se ter maior adesão e compromisso de todos?
Os municípios brasileiros salvaram o SUS nos últimos anos. Eles foram montando essa maravilhosa e imperfeita rede por todo o País, com apoio, sem apoio e até com força contrária, às vezes, das duas outras esferas de gestão. Foi a feliz ideia e prática da municipalização que viabilizou certamente os heroicos resultados que o Brasil já tem, com tão pouco dinheiro público investido em saúde até hoje. Até o próprio limite da municipalização, que é a falta da regionalização regulada, com claro papel ordenador da esfera estadual, sempre foi reclamado pelos gestores municipais. Só que não pudemos esperar todos se organizarem para nos apoiar. Agora precisamos de muito apoio para fortalecer nossa APS em todos os municípios e montar redes regionais reguladas em todo o País. Os Estados e o governo federal, além de apoio, precisam montar de forma parceira mecanismos de monitoramento e verificação da APS em todo o País. Na educação, não é possível o município não assumir a educação fundamental, assim como na saúde não é possível ele não assumir pelo menos a APS em sua plenitude. Esse é o princípio do Pacto pela Saúde porque tanto nos batemos no Conasems.
7) Com a criação da rede de pesquisa, espera-se criar um canal de comunicação e articulação entre pesquisadores, profissionais, usuários e gestores da APS. Para o senhor quais serão os grandes desafios a ser enfrentados?
Os grandes desafios são centralmente o que já disse anteriormente, mas posso resumir em financiamento suficiente e sustentado, revolucionária política de gestão de pessoas para o SUS e conformação de redes integrais de atenção focadas na APS e sob permanente gestão e monitoramento de qualidade. Um desafio mais amplo do que o próprio setor saúde é a articulação de várias políticas públicas para promover saúde, enfrentando questões cruciais como a violência e as drogas. E, para isso, é fundamental a articulação dos gestores, trabalhadores, usuários e pesquisadores com esse foco na defesa concreta do SUS.
8) Em ano eleitoral, o senhor vislumbra alguma preocupação para a política nacional de APS com os candidatos? Acredita que pode haver um reordenamento do sistema de saúde?
Preocupação grande com os candidatos e a APS acho que não. O SUS veio para ficar e ser ampliado. Acho que vai variar a ênfase, as prioridades, a clareza estratégica dos enfrentamentos na sociedade e o estilo de governar. Nesse sentido, não tenho dúvidas, como temos procurado demonstrar, que há muitas diferenças nas duas candidaturas e que a continuidade da atual política de saúde do governo federal, como acabamos de dar os exemplos do PAC 2, é o melhor caminho para o SUS, usuários e trabalhadores. Até porque também a agenda de desenvolvimento brasileiro sustentado, exemplo para o mundo, com inclusão social e redução das desigualdades, é também produtor de saúde.
 
9) Para finalizar a entrevista, gostaríamos que deixasse a todos os participantes da rede uma dica, ideia que acredita que seja o principal diferencial de quem veste a camisa da APS.
A principal dica para mim de quem veste a camisa da APS é ter a certeza de estar simplesmente do lado mais avançado do mundo que deu bons resultados em saúde, nos indicadores, objetivos e satisfação dos usuários. É um pouco estar do lado do óbvio se víssemos com atenção as experiências vitoriosas brasileiras e de todo o mundo. O que precisamos é ganhar hegemonia na luta desigual contra o aparato médico industrial e cultural da sociedade, que supervaloriza, mesmo com resultados pífios, a superespecialização, o primado dos procedimentos contra o cuidado e do aparato de equipamentos onerosos e pouco resolutivos na prática.

A pesquisa e os serviços de Atenção Primária -Informativo – 13/10/2010

Existe hoje o reconhecimento que as decisões (sejam clínicas, de gestão ou de definição de políticas de atenção à saúde) devam ser fundamentadas em evidencias. É corrente que as evidencias são essenciais para qualificar a atuação das equipes de saúde e a gestão dos serviços, e que provém tanto de conhecimentos tácitos, como de conhecimentos explícitos -em outras palavras, são derivadas tanto da experiência prática, como da pesquisa formal. E, embora as decisões tomadas com base em evidencias sejam geralmente referidas como conhecimento explícito, é justamente o saber tácito que as distingue e qualifica.

O conhecimento tácito é de caráter prático e subjetivo, implícito, advindo da experiência dos clínicos, dos gerentes, das equipes. Sustenta um ´como fazer´, freqüentemente só aplicável ao local, raramente publicado, tradicionalmente pouco valorizado. O conhecimento explícito é de caráter teórico e objetivo, acadêmico: resultado de estudos formais, é publicado em revistas científicas e afirma um ´o que fazer´ generalizável. Tradicionalmente muito valorizado.[1]

Serviços de saúde baseados em evidências são aqueles que têm, eles próprios, a capacidade de produzir evidencias (nos serviços de Atenção Primária há grande riqueza de conhecimentos advindos da prática e da ciência do contexto) e a flexibilidade de incorporar evidencias às suas práticas clínicas e gerenciais: seus profissionais, individualmente e em equipe, devem possuir a destreza de encontrar, avaliar e usar o conhecimento advindo de pesquisa formal. Para tanto, a produção de conhecimento e o seu uso devem ser institucionalmente valorizados, o que exige um contexto de aprendizagem, o apoio de sistemas que disponibilizam a melhor informação vigente, e uma cultura avaliativa. Ambos os conhecimentos, tácito e explícito, devem estar disponíveis quando necessário!

Os serviços de Atenção Primária (APS) não prescindem de estudos que respondam, a curto prazo, às perguntas de gerentes e equipes de saúde. Equipes comprometidas, sensíveis aos fenômenos relacionados à saúde da população local, buscam entender esses fatos de forma a melhor adaptar suas ações e corresponder com eficiência às necessidades em saúde. Assim, estudos operacionais são realizados por integrantes destas equipes, retroalimentando-as com agilidade na adequação das atividades clínicas, de planejamento e de avaliação dos serviços.

A seguir são apresentados alguns exemplos de estudos operacionais, onde se observa a vinculação de evidencias provenientes das diferentes fontes de conhecimento, e sua utilização no aperfeiçoamento das práticas.

(a) qualidade da atenção às crianças com asma[2] – O monitoramento das internações por asma em menores de 19 anos demonstrou que, apesar da disponibilidade de medicação e das atividades de atualização das equipes de saúde, o número de hospitalizações por essa condição sensível à APS seguia acima do esperado. Uma breve entrevista, sistematizada, em todos os casos de internações, por período determinado, demonstrou que hospitalizações poderiam ter sido evitadas se: corticóide inalatório houvesse sido prescrito, conforme o protocolo, em um maior número de situações; fosse seguida a recomendação de entregar um plano de ação escrito a todos pacientes; os pacientes e familiares fossem melhor orientados quanto à técnica inalatória e recorrido ao tratamento no início da crise; houvesse sucedido a desmistificação de crenças tais como spray faz mal ao coração. Estes resultados subsidiaram as atividades de educação continuada das equipes e resultaram em imediata mudança nas atitudes dos profissionais e redução do número de hospitalizações.

(b) diagnósticos de sífilis congênita[3]- a identificação de casos da doença levou à revisão da qualidade do atendimento pré-natal e da realização dos exames preconizados. O estudo demonstrou 94% de realização do VDRL e 94% de anti-HIV no primeiro trimestre da gestação; e 79% de realização de VDRL e 63% de anti-HIV no terceiro trimestre, evidenciando falhas no pré-natal. Os resultados foram prontamente discutidos com as equipes de saúde e os reflexos dessa intervenção estão sendo monitorados.

(c) problemas freqüentes em APS[4] – seis diagnósticos (hipertensão arterial, diabete mélito não insulino-dependente, infecção de vias aéreas superiores, asma, transtornos depressivos e dorsalgias) e quatro condições relacionadas à prevenção (pré-natal, prevenção do câncer ginecológico, revisão de saúde no adulto e puericultura) representaram, em 2009, um terço das 14.611 razões de consulta. Essa informação foi essencial para as atividades de atualização de equipes de saúde e estruturação dos serviços.

(d) desconhecimento do que é APS pelos gerentes/coordenadores da APS[5]. Ainda que o Brasil tenha optado por um sistema de saúde orientado pela APS, menos de um quarto dos gestores/gerentes da Atenção Primária identificam os quatro atributos próprios da atenção primária. Ora, os gestores/gerentes são os responsáveis por criar as condições de operacionalização da APS, o espaço para que as equipes de saúde concretizem a atenção primária com eficiência. Não obstante eles conheçam os valores e princípios do SUS e do Saúde da Família, desconhecem os elementos de sua operacionalização e avaliação. Esta avaliação gerou projetos de capacitação e atualização para gerentes/gestores da APS, entre eles o Projeto AGAP[6], que está em fase de avaliação dos resultados.

Silvia Takeda
Médica Epidemiologista
Equipe de Monitoramento e Avaliação
Serviço de Saúde Comunitária[7]
Grupo Hospitalar Conceição
Porto Alegre, RS.

[1] MUIR GRAY, J.A. Evidence-based Healthcare and Public Health: how to make decisions about health services and public health. Edinburgh:Churchill-Livingstone Elsevier, 2009. 3rd ed.
[2] LENZ, M.L. Hospitalizações por condições sensíveis à APS no Serviço de Saúde Comunitária. Porto Alegre: Grupo Hospitalar Conceição, 2010. Contato: mlenz@ghc.com.br
[3] LENZ, Maria Lúcia. Qualidade do pré-natal no Serviço de Saúde Comunitária. Porto Alegre: Grupo Hospitalar Conceição, 2010. Contato: mlenz@ghc.com.br
[4] FLORES, Rui. Monitoramento & avaliação no Serviço de Saúde Comunitária. Porto Alegre: Grupo Hospitalar Conceição, 2010. Contato: frui@ghc.com.br
[5] CONSELHO NACIONAL DOS SECRETÁRIOS DE SAÚDE. Aperfeiçoamento da gestão em Atenção Primária à Saúde. Brasília:CONASS, 2005. Contato: conass@conass.org.br
[6] CONSELHO NACIONAL DOS SECRETÁRIOS DE SAÚDE. DEPARTAMENTO DE ATENÇÃO BÁSICA. UNIVERSIDADE DE TORONTO. Projeto de Intercâmbio de conhecimentos Brasil-Canadá: Projeto de Aperfeiçoamento em Gestão da Atenção. Contato: conass@conass.org.br
[7]O Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Conceição é um serviço de atenção primária, com 30 anos de existência. Conta com 12 Unidades de saúde responsáveis por uma população de 120 mil habitantes na cidade de Porto Alegre.