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Arquivo Diário 26 de outubro de 2010

Dr. Helvécio Miranda Magalhães Júnior

1) Como foi a sua experiência, como gestor, tendo a APS como orientadora do sistema?
Considero que nossa experiência em Belo Horizonte na organização da rede municipal de saúde, articulada sob comando único da gestão municipal, teve a grande marca de ter claramente colocado a APS como o centro dessa rede nos diversos territórios. Radicalizamos o conceito de muitos anos de territorialização ancorada em Unidades Básicas de Saúde, com a implantação do formato organizacional da Saúde da Família na APS, que tem princípios, conceitos e práticas que facilitam o papel de centro e gestor da rede integral de atenção. Essa experiência vigorosa em um grande município deve servir de estímulo ao conjunto do País.
2) Em recente lançamento do livro “Desafios e Inovações na Gestão do SUS”, em Belo Horizonte, o senhor sugere a construção de um modelo descentralizado com foco na atenção primária. Como funciona esse modelo?
O modelo a que me refiro é exatamente aquele que citei na primeira pergunta. Organizar todo o sistema municipal de saúde em camadas territoriais baseadas em centros de APS, cujas equipes potencializadas por suporte logístico e organizacional se transformam progressivamente em cuidadores diretos de determinada população e gestores do cuidado ao longo do tempo e da vida, independentemente de onde esse cuidado for prestado e, ainda, articulando atenção e promoção. Esse cuidado será feito onde estão os diversos pontos de atenção de apoio de urgência, de especialidades, de saúde mental, de apoio diagnóstico, de atenção hospitalar etc. Essa verdadeira rede territorializada é certamente descentralizada pela dimensão do município e temática, de acordo com as necessidades de saúde detectadas. E mais, as equipes da APS, gestores definitivos do cuidado integral, têm que zelar pela prestação, independentemente de onde ocorra, munidos de um sistema de informação inteligente e potente para dar essa condição de responsabilidade às equipes.
3) Um dos problemas para o fortalecimento da atenção primária está na contratação de profissionais, principalmente médicos. Como solucionar essa questão?
Sendo a APS o centro das redes, além de fortalecida e ampliada, ela ainda tem enormes desafios no País. Talvez os maiores deles sejam a captação, a fixação e a satisfação dos profissionais médicos. E não por serem mais ou menos importantes do que os demais profissionais. É porque são hoje um recurso escasso no Brasil, exatamente pela enorme demanda gerada pelo próprio crescimento do SUS nos últimos anos. Temos que ter mais médicos disponíveis ao sistema, em especial à APS, fixados e transferidos com o seu objeto de trabalho e, fundamentalmente, satisfeitos e vendo sentido no que fazem. É um problema de difícil solução, que não comporta mágicas, mas que precisa ser enfrentado. Inclusive, proponho um grande pacto nacional com a própria categoria médica, em defesa do SUS e por uma nova APS: mais profissionais ofertados, serviço civil obrigatório, mais cursos públicos e privados de medicina com qualidade e vinculados ao SUS, regulação profissional do Estado subordinada ao interesse público, carreiras estimulantes, concursos públicos democráticos, proteção contra perseguições políticas, respeito e reconhecimento profissional, ambientes de trabalho dignos e estimulantes, educação permanente, telessaúde, apoio psicológico integral, enfrentamento da solidão e condição para trabalho em equipe, que são temas de uma sofisticada agenda para os próximos tempos no País. Sem subestimar o problema, sou confiante em podermos resolvê-lo. Já fizemos coisas mais difíceis neste SUS.
4) No discurso de posse do Conasems, em 2007, o senhor reforçou a importância de maiores investimentos na APS. O Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, também ressaltou essa necessidade no XXVI Congresso de Secretarias Municipais da Saúde. De lá para cá houve algum avanço nesse sentido?
Felizmente tivemos nos últimos anos crescente investimento na APS por parte do MS, dos Estados e, especialmente, dos municípios. Mas considero ainda pouco. Minha proposta é utilizar no mínimo 70% de todos os novos recursos que vierem para a saúde com a APS, aí incluídas as ações de promoção à saúde. Defendo uma blindagem orçamentária para a atenção primária e suas redes. E os outros 30% para suprir topicamente pontos de atenção de especialidades, urgências e atenção hospitalar no conceito de rede centrada na APS. É preciso um ciclo virtuoso de investimentos e monitoramento rigoroso da atenção primária no Brasil. Uma espécie de cruzada nacional pela APS, com estabelecimento de um patamar mínimo de acesso, cuidado e qualidade a que todos os brasileiros terão direito, independentemente de onde morarem. Essa é nova marca da cidadania em saúde, cumprindo os princípios constitucionais e avançando na igualdade.
5) A Estratégia Saúde da Família obteve importantes investimentos em infraestrutura de serviços de APS no recém-lançado Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2). A que se deve essa conquista?
Terem sido colocadas no PAC 2 mais de 8.000 Unidades Básicas de Saúde é a demonstração que o caminho que proponho é possível. Falta muito dinheiro ainda para uma saúde minimamente razoável, mas, se existe uma chance, é a de começar a investir pela APS. E mais, o PAC 2 Comunidade Cidadã traz a novidade dos milhares de creches, vitais para a redução da mortalidade infantil e para o futuro da educação e, por derivação, também para a saúde dos futuros adultos, a Praça do PAC, que é a expressão da intersetorialidade tanto defendida pela saúde e os investimentos em esportes. E ainda tem as 500 Upas, que devem compor a rede de suporte à APS como ponto de atenção contínua ou não terão muita eficácia. Ou seja, passou despercebido, até da própria propaganda oficial do governo federal, que o PAC 2 é um ousado passo em cumprir a Constituição Federal no seu capítulo da Saúde. O próximo governo certamente continuará esse caminho que os municípios já vêm seguindo há tanto tempo.
6) O fortalecimento da atenção primária passa pelos municípios que aderem a sua implantação. O que julga necessário fazer para se ter maior adesão e compromisso de todos?
Os municípios brasileiros salvaram o SUS nos últimos anos. Eles foram montando essa maravilhosa e imperfeita rede por todo o País, com apoio, sem apoio e até com força contrária, às vezes, das duas outras esferas de gestão. Foi a feliz ideia e prática da municipalização que viabilizou certamente os heroicos resultados que o Brasil já tem, com tão pouco dinheiro público investido em saúde até hoje. Até o próprio limite da municipalização, que é a falta da regionalização regulada, com claro papel ordenador da esfera estadual, sempre foi reclamado pelos gestores municipais. Só que não pudemos esperar todos se organizarem para nos apoiar. Agora precisamos de muito apoio para fortalecer nossa APS em todos os municípios e montar redes regionais reguladas em todo o País. Os Estados e o governo federal, além de apoio, precisam montar de forma parceira mecanismos de monitoramento e verificação da APS em todo o País. Na educação, não é possível o município não assumir a educação fundamental, assim como na saúde não é possível ele não assumir pelo menos a APS em sua plenitude. Esse é o princípio do Pacto pela Saúde porque tanto nos batemos no Conasems.
7) Com a criação da rede de pesquisa, espera-se criar um canal de comunicação e articulação entre pesquisadores, profissionais, usuários e gestores da APS. Para o senhor quais serão os grandes desafios a ser enfrentados?
Os grandes desafios são centralmente o que já disse anteriormente, mas posso resumir em financiamento suficiente e sustentado, revolucionária política de gestão de pessoas para o SUS e conformação de redes integrais de atenção focadas na APS e sob permanente gestão e monitoramento de qualidade. Um desafio mais amplo do que o próprio setor saúde é a articulação de várias políticas públicas para promover saúde, enfrentando questões cruciais como a violência e as drogas. E, para isso, é fundamental a articulação dos gestores, trabalhadores, usuários e pesquisadores com esse foco na defesa concreta do SUS.
8) Em ano eleitoral, o senhor vislumbra alguma preocupação para a política nacional de APS com os candidatos? Acredita que pode haver um reordenamento do sistema de saúde?
Preocupação grande com os candidatos e a APS acho que não. O SUS veio para ficar e ser ampliado. Acho que vai variar a ênfase, as prioridades, a clareza estratégica dos enfrentamentos na sociedade e o estilo de governar. Nesse sentido, não tenho dúvidas, como temos procurado demonstrar, que há muitas diferenças nas duas candidaturas e que a continuidade da atual política de saúde do governo federal, como acabamos de dar os exemplos do PAC 2, é o melhor caminho para o SUS, usuários e trabalhadores. Até porque também a agenda de desenvolvimento brasileiro sustentado, exemplo para o mundo, com inclusão social e redução das desigualdades, é também produtor de saúde.
 
9) Para finalizar a entrevista, gostaríamos que deixasse a todos os participantes da rede uma dica, ideia que acredita que seja o principal diferencial de quem veste a camisa da APS.
A principal dica para mim de quem veste a camisa da APS é ter a certeza de estar simplesmente do lado mais avançado do mundo que deu bons resultados em saúde, nos indicadores, objetivos e satisfação dos usuários. É um pouco estar do lado do óbvio se víssemos com atenção as experiências vitoriosas brasileiras e de todo o mundo. O que precisamos é ganhar hegemonia na luta desigual contra o aparato médico industrial e cultural da sociedade, que supervaloriza, mesmo com resultados pífios, a superespecialização, o primado dos procedimentos contra o cuidado e do aparato de equipamentos onerosos e pouco resolutivos na prática.