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Arquivo Mensal maio 2011

Emiko Egry

Quais são os aspectos que a senhora considera positivos e negativos no sistema público de saúde no Brasil?

Sou defensora do Sistema Único de Saúde (SUS), militante da reforma. De negativo? Nada. Existem muitas coisas ainda para trabalhar, consolidar, mas do sistema em si não observo nenhum aspecto negativo. O que vejo é que, assim como as leis, o sistema também é uma formulação teórica e, quando vai sendo operacionalizado, na prática, encontram-se obstáculos não antevistos. Isso, então, faz com que se torne mais difícil a verdadeira construção do SUS da forma como colocamos lá nos primórdios com seus princípios mais importantes. Entre eles, acredito que mais difícil de alcançar é a integralidade. De alguma maneira, a universalidade e a equidade, por meio de diferentes meios, foram gradativamente conquistadas. Não estou dizendo que estamos num ponto ideal porque acho que não vai existir, mesmo porque, em saúde, novas demandas e velhos problemas que ressurgem colocam mais desafios para nós. Eu modificaria um pouco o perfil de acesso das populações no sentido de que poderiam ter melhor qualidade de vida, ou seja, a distribuição da riqueza produzida poderia ser melhorada. A falta de condições objetivas de vida é uma barreira para a melhor implantação do SUS, que não depende só do serviço de saúde, mas muito do substrato da população – da capacidade que ela tem de ser alfabetizada, educada, de ter moradia, alimentação, os filhos frequentando a universidade. Acredito que é esse o obstáculo para a maior rapidez na implantação definitiva do SUS.

E no que se refere especificamente à Atenção Primária à Saúde?

A Atenção Primária à Saúde (APS), pela nossa discussão teórica lá no Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, da Escola de Enfermagem da USP, entrou no Brasil um pouco enviesada pela concepção de “assistência pobre para pobres” e tivemos muitos problemas em relação a isso, pois, para nós da enfermagem em saúde coletiva a base epistêmica é diferente. Tomamos o SUS como campo de desenvolvimento da saúde coletiva e, portanto, não consideramos a atenção primária igual à atenção básica como muitos dizem hoje. Ao pertencer a campos epistemológicos distintos, é preciso redefinir em cada um deles de que sociedade/ser humano estamos falando e qual é a concepção ou interpretação da saúde-doença que estamos dando. A APS, a princípio, tirava de nós essa primeira preocupação em saúde coletiva, que é a interpretação do processo de saúde e doença do ponto de vista realista, dito de outro modo, na perspectiva dialético-materialista. Assim, se tomarmos como sinônimas, perderia ou desgastaria a questão primeira que é olhar a produção social como forma de recortar e diferenciar os grupos sociais da sociedade para, então, pensar em perfis de saúde-doença consequentes a essas diferenças que temos dos grupos sociais no Brasil. Ao adotar rapidamente a atenção primária quando foi formulada, ela não tinha nem um pouco esse aspecto ou o olhar para o desenvolvimento da sociedade, da estrutura de classes e o contexto de cada sociedade. Agora eu vi um documento, datado de uns três anos atrás, sobre a renovação do conceito de atenção primária e que vai percorrendo diferentes entendimentos que ela foi assumindo. Acho que, hoje, o entendimento que se coloca em relação à APS é mais congruente com o modo que nós pensamos sobre a atenção básica e a saúde coletiva. Não estou falando da concepção de atenção primária da primeira época, do Alma-Ata, mas ainda me preocupo que ela dilua a questão do olhar primeiro, em que as pessoas não têm acesso a bens e serviços de forma qualificada e que qualifiquem a vida delas. Não quero que essa discussão saia do palco, mas sempre vou colocá-la no meio. Por mais que se fale em extensão de cobertura, em Estratégia Saúde da Família com cada família recebendo tanto a assistência promocional da saúde quanto a preventiva e a curativa necessárias, não podemos nos esquecer das diferenças historicamente construídas entre grupos sociais.

Como tem sido sua experiência frente à diretoria do Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem na Associação Brasileira de Enfermagem?

Sou nova na diretoria, recém-empossada em outubro e estou prestes a começar meus trabalhos. Sou da Academia, da universidade, de grupos de pesquisa, pesquisadora de produtividade do CNPq, fui membro do comitê de avaliação da CAPS, da enfermagem, e também da comissão assessora do CNPq de enfermagem, então, vejo a entrada no Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem na Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) como continuidade dos esforços da entidade no sentido de qualificar a produção científica e impactar politicamente na construção da cidadania e saúde no Brasil. O Centro de Estudos e Pesquisas em Enfermagem, da qual sou diretora, é o lugar onde conseguiremos reunir o maior acervo de produção científica em teses e dissertações no Brasil (acervo físico, impresso). Ele permite a consulta de todos os enfermeiros e dos técnicos de enfermagem e da comunidade em geral. O acesso a ele não é restrito apenas a abenistas (associados da ABEn). A ABEn é uma associação que é formada de voluntários que vão se associar. Acho que temos feito muito esforço e o reconhecimento disso vai ter grande impacto, trazendo maior visibilidade às próprias pesquisas e gerações de conhecimentos da enfermagem e da saúde. A enfermagem não produz conhecimento só sobre enfermagem, mas também sobre saúde. A nossa preocupação com ela é sempre com a realidade da saúde neste País e como fazemos o cuidado, o gerenciamento, a gestão, entre outros temas. Nossas pesquisas são aplicadas e resultam em algo socialmente útil quase que de imediato, portanto, temos muitas pesquisas importantes que falam da atenção primária, da Estratégia Saúde da Família ou via gestão de enfermagem nos municípios e territórios.

No atual cenário brasileiro, como vê a atuação da enfermagem na Atenção Primária à Saúde e quais seriam suas perspectivas? Como visualiza essa trajetória daqui pra frente?

Para a enfermagem brasileira, a Estratégia Saúde da Família possibilitou importantes avanços para a profissão, tanto dos enfermeiros quanto dos técnicos e auxiliares. É a primeira vez que se faz um pareamento de um profissional de nível superior no Brasil. Historicamente, tem-se uma taxa de profissional por habitante -– a taxa relativa à enfermeira e de médico -– invertida no Brasil em relação ao que é recomendado. As equipes de Saúde da Família (eSF) vêm um pouco para equalizar e colocar para a enfermagem esse desafio, ocupando espaços delas. Houve aumento considerável da necessidade de profissionais, mas também proliferação de cursos de enfermagem de nível superior que não os prepara adequadamente para a complexa tarefa que hoje se exige deles. As competências da enfermagem, por exemplo, na atenção primária: ela está legislada, regulada pela legislação do Conselho Federal de Enfermagem, mas, na prática, é sempre tensa quando posta em prática na equipe. Possui competências definidas, porém não esgotam as necessidades predefinidas de atenção da população, ou seja, a população apresenta necessidades em saúde e vulnerabilidades que extrapolam o que os serviços preveem ou que a legislação define como de competência do médico, da enfermeira, do técnico e também dos outros profissionais que lidam com a saúde. Quem é que deve atender às necessidades que extrapolam? Quem tem competência de verdade, ou seja, está escrito que é competência de quem negociar a adesão aos projetos terapêuticos? Na verdade, se o médico tem algum projeto terapêutico, também tem um projeto de cuidado. Eu vou dizer que ainda para as competências já totalmente definidas a enfermagem necessita fazer aquilo que venho perguntando dentro das falas aqui: onde está o projeto para a qualificação de educação permanente desses profissionais? Eles entram para a eSF na base do “toma que o filho é seu! Sua equipe agora tem mil famílias para cuidar”. O que eu faço quando tem predomínio de narcotráfico na sua comunidade? Isso são questões verdadeiras e salve-se quem puder! O serviço quer saber a produção quantificada; eu quero saber quantas famílias a ACS visitou. Qualitativamente, o que sucedeu na interface entre o ACS e a família no domicílio, de fato, ninguém vai registrar e considerar como um trabalho em saúde. Na eSF, é preciso recuperar esse objeto de trabalho, para depois entender como os diferentes membros da equipe podem melhor atender às necessidades em saúde e vulnerabilidades dos grupos populacionais.

A enfermagem é como se fosse uma ponte?

A enfermagem demorou anos para dizer: “Nossa população merece atendimento mais qualificado do que aquele que o atendente consegue dar”. Não é porque ele não queira dar, é porque a formação não o capacita para isso. Lembro-me de Isabel dos Santos, enfermeira, e tenho muito orgulho de a ter conhecido pessoalmente e trabalhado com ela em alguns assuntos sobre a qualificação de auxiliares de enfermagem. Ela muito lutou neste país para que os atendentes pudessem fazer capacitações formais para torná-los auxiliares de enfermagem quando uma lei extinguiu a categoria. Não se extingue categoria quando se tem pessoas trabalhando, pelo contrário, qualifica-se essa gente para ir para categoria e estar legalizada. Acho que a Estratégia Saúde da Família tem vários problemas. Pela mesma jornada de trabalho, o mesmo profissional pelo mesmo nível de escolaridade não ganha o mesmo salário? Isso para mim é algo que precisamos superar. Como venho de uma universidade onde a minha escolaridade, que é a titulação, é equivalente a de todo mundo, ou seja, não interessa se você é advogado, engenheiro ou médico se um professor titular tem o mesmo salário que eu, que sou professora titular. Não entendo por que executando a mesma função, as mesmas tarefas, com as mesmas complexidades e o mesmo nível de competência, as pessoas ganham salários diferentes, como é o caso dos profissionais de nível superior. São essas as inúmeras questões com que a enfermagem lida. Somos um milhão e quatrocentos mil em todo o Brasil, entre técnicos, auxiliares e enfermeiras. A enfermagem brasileira de nível superior e universitário tem a tradição da pós-graduação, mestrado, doutorado. Temos o primeiro doutorado da América Latina no País. Construiu-se uma ciência da enfermagem onde o público em geral nem sabe que ela existe. Você sabe cuidar, assistir, intervir nos processos de doenças sem ter que entrar em diagnóstico terapêutico. Comparativamente a outros países vizinhos, andamos bastante bem, mas ainda temos muito a avançar, sobretudo na qualificação dos trabalhadores, na regulação da jornada de trabalho etc.

Como resolver a escassez dos recursos humanos?

Participei de um projeto do ministério, o Profae, no componente de certificação de competência dos auxiliares de enfermagem e criamos uma metodologia de avaliação. Foi muito boa. Ela está guardada, é uma pena, pois precisava ser replicada no Brasil. Foi fabuloso. Competências no saber fazer, saber ser ético… As três competências foram examinadas tanto pelas provas teóricas como pelas provas práticas em laboratório e, também, provas virtuais, as quais chamamos como provas da internet, que são ao mesmo tempo educativas, formativas. Ela mesma explica vários aspectos. Fizemos, então, a aplicação da validação desse tipo de prova e, no fim de tudo, os auxiliares de enfermagem foram qualificados pelo Profae, que deu cursos também para qualificar os atendentes para que se tornassem auxiliares de enfermagem, que era a proposta de Isabel dos Santos. No final de tudo, eles comparecem voluntariamente ganhando só passagem e comida, pois é uma pesquisa e não posso pagar os pesquisandos. Então, não estamos lidando com pessoas que estão estagnadas no mesmo lugar querendo exercer aquela função, eles sabem que em outro lugar aprendem mais, sabem que vão ter ferramentas para lidar melhor. Os técnicos perguntaram: “Como fica o nosso acesso?” Como no nível médio a formação ainda é regulada pelo Ministério da Saúde para o superior, eles não conseguem pelo diálogo, mas para o nível médio inteiro les conseguem porque é competência do ministério. Tem as escolas técnicas do SUS, por exemplo. Qual é a cota para absorver as pessoas que vêm do nível médio de auxiliar de enfermagem?

Política de formação é uma coisa que tem que ser discutida e reformulada?

Tem que ser implementada sem medo de ser feliz. Acho que é melhor tirar alguma coisa, mesmo sujeita a “chuvas e trovoadas”, e pactuar inicialmente. Tem que se fazer algo e ir melhorando durante a execução. O Profae é uma grande experiência que deu certo. Acredito que precisaria ao menos reeditá-lo porque qualificou doze mil enfermeiras no nível de especialização para serem licenciadas para melhorar a relação de professoras no nível médio. Para ser professora no nível médio neste País, só com licenciatura e, para fazer uma licenciatura, mas que tenha também competências técnicas da área, foi feita especialização pelo Profae. Então, são doze mil enfermeiras no Brasil que eram professoras de escolas técnicas que foram qualificadas. Imagino que as aulas que elas estiverem dando agora sejam melhores e que mais de 220.000 atendentes viraram auxiliares de enfermagem. É o projeto do BID mais bem avaliado do Brasil. Esse modelo foi exportado para outros países, mas aqui mesmo não teve andamento. Nós não podemos pegar só mais 200.000, tem muita gente. E aí eu acho que tem que fazer outra coisa: agora é a qualificação do auxiliar para o técnico. Esse é o projeto bem sucedido que está de plena governabilidade com o Ministério da Saúde. É preciso que experiências bem sucedidas possam ter continuidade; é também uma forma de construir cidadania e melhorar a inserção social.

Na parte final qual seria a sua dica? Qual o diferencial da pessoa que realmente luta por uma Atenção Primária à Saúde com qualidade?

Acredito que é pensar em qualificação e formação principalmente na educação permanente. Isso é uma coisa esquecida, as entidades privadas nesse aspecto (até porque elas são cobradas), os usuários dos serviços privados em geral são muito mais exigentes do que os do serviço público por causa daquela coisa de “estou sendo atendido de graça” e ter que dar “obrigado”. Eles exigem melhor qualificação dos profissionais sob pena de escolher outro serviço para ir. Acho que precisamos de uma política pública de educação permanente que contemple não só os médicos (porque é a primeira categoria que entra quando falam que vão formar uma política), mas que contemple a todos. E as pessoas de menor qualificação necessitam triplamente mais de educação permanente. Os que se formam em nível superior têm o pensamento de continuidade dos estudos por automotivação. O contrário disso ocorre no nível médio, pois quase ninguém se forma com esse pensamento. É a continuidade da carreira da pessoa para poder ir progredindo considerando sempre a experiência da formação anterior. Nesse aspecto, a entidade como a ABEn pode muito contribuir na formulação de política de educação permanente aos trabalhadores de nível médio de enfermagem, principalmente.