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Arquivo Mensal setembro 2011

Henrique Botelho

Português, 55 anos, licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Assistente Graduado Sênior de Medicina Geral e Familiar. Foi Diretor do Centro de Saúde de Terras de Bouro entre 1996 e 2009. Em 2005, integrou a Unidade de Missão para os Cuidados de Saúde Primários, sendo até abril de 2008 o Coordenador da Equipe Regional de Apoio na Região Norte de Portugal. Integrou, entre 2008 e 2010, a Equipe de Análise Estratégica do Grupo Consultivo para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, destinado a apoiar o gabinete ministerial, sendo coautor dos Relatórios “Acontecimento Extraordinário” (2009) e “Tempos Decisivos” (2010). Convidado como Assistente para a Área da Saúde Comunitária da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho.Integra, recentemente, o Grupo Operativo do Observatório Ibero-Americano de Políticas e Sistemas de Saúde. Membro do Conselho Nacional da Federação Nacional dos Médicos.É atualmente Diretor Executivo do Agrupamento de Centros de Saúde Ave I – Terras de Basto.

Como o senhor descreveria, brevemente, o sistema de saúde português? Seus pontos fortes e fracos?
A Constituição da República Portuguesa estabelece que o direito dos cidadãos à proteção da saúde é realizado por meio de um Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado em 1979, que é universal, geral e tendencialmente gratuito, levando em conta as condições econômicas e sociais dos cidadãos. Construído sob forte inspiração do NHS inglês, o seu financiamento é assegurado pelo Orçamento Geral do Estado, num modelo de tipo beveridgiano. O aumento progressivo dos custos com a saúde, agravado pela presente crise econômica e financeira, assim como o aumento da esperança de vida e consequente envelhecimento da população têm levado sucessivos governos a introduzir alguns mecanismos tendentes a moderar o consumo e atenuar a despesa. São instrumentos que, cada vez mais, fazem com que o sistema público de saúde evolua para um modelo de copagamentos, por meio dos quais os cidadãos vão sendo chamados a suplementar os serviços que lhes são prestados. Ou seja, encontramo-nos entre um modelo público inicialmente definido como pré-pago (pago hoje na medida das minhas possibilidades para eventualmente usufruir amanhã na medida das minhas necessidades) e um modelo misto e suplementado por contribuições diretas dos cidadãos e também por ofertas do mercado por meio de instituições privadas, umas convencionadas com o Estado, outras financiadas essencialmente por mecanismos seguradores comprados pelos cidadãos interessados e que a eles podem aceder. O SNS distribui-se por meio de duas grandes áreas: a rede hospitalar e a rede de Cuidados de Saúde Primários – CSP (atenção primária).Portugal dispõe dum elevado número de hospitais que alguns analistas até consideram como sobredimensionados, com diferenciação técnica e redes de referenciação estabelecidas e adequadas.A rede de Cuidados de Saúde Primários engloba fundamentalmente a área personalizada da Medicina e Enfermagem de Família a par duma outra vertente orientada para a abordagem epidemiológica e comunitária centrada em unidades de saúde pública, a cujos médicos especialistas estão também atribuídas funções de autoridade de saúde. Nos últimos anos, temos assistido a um incremento, embora ainda muito distante das necessidades, da incorporação de novas profissões e competências, como psicólogos clínicos, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, técnicos de saúde oral etc. Cada médico de Família é responsável por uma lista de cerca de 1.550 pessoas (que pode crescer, em certas situações, até próxima de 2.000), sendo estimulada a inscrição familiar. Dentro da oferta disponível, o cidadão/família é livre para escolher a equipe e o médico que o irá acompanhar.Existe ainda um desequilíbrio acentuado na relação médicos hospitalares versus médicos de Medicina Geral e Familiar, em desfavor dos últimos. Essa realidade, que nos últimos anos tem sido alvo de algumas medidas corretivas, determina que um número considerável de cidadãos (calcula-se entre 5% e 7%) ainda não possua acesso a médico de Família. Os médicos da carreira de saúde pública são também insuficientes em face das necessidades.

Em Portugal, quais foram os principais elementos da reforma empreendida para melhorar a qualidade dos cuidados de atenção primária?
Essa reforma foi encetada em 1998, interrompida em 2000 e posteriormente retomada e desenvolvida a partir de 2005. Visa essencialmente a responder aos desafios naturais que decorrem da própria evolução da sociedade, dos anseios dos profissionais e do conhecimento científico das especialidades envolvidas e das próprias organizações. O modelo que, desde o início dos anos 80, contribuiu para ganhos de saúde verdadeiramente extraordinários necessitava de ajustes. Havia que responder positivamente a vários constrangimentos que progressivamente vinham a contribuir para insatisfação crescente, desinvestimento e incapacidade de atração de jovens profissionais, principalmente médicos, nessa área fundamental para a homeostasia de qualquer sistema de saúde.
Por outro lado, os profissionais dos cuidados de saúde primários, principalmente os médicos de Família, desenvolveram desde o início dos anos 80 um trabalho notável. Centraram-se na busca e construção dum perfil, duma identidade técnico-profissional, metodológica e científica própria e dum modelo de organização adequado a um serviço de proximidade. Dirigem-se à prestação de cuidados globais de qualidade a pessoas e famílias, nas suas vertentes de promoção da saúde, prevenção da doença e com especial incidência no acompanhamento da saúde da mulher, da criança e do adolescente, dos adultos e da “melhor idade”, das doenças crônicas mais prevalentes e no atendimento da doença aguda ou “doença do próprio dia”. A reforma dos cuidados de saúde primários em Portugal assenta, em primeiro lugar, na criação de contextos organizacionais favoráveis à mudança de comportamentos.A necessidade de se evoluir rapidamente duma estrutura piramidal de comando-controle para um modelo participativo, que conferisse espaço à criatividade e inovação dos profissionais e que soubesse também interagir com os cidadãos e as comunidades. Um modelo adaptativo assente em pequenas equipes multidisciplinares com um significativo grau de autonomia contratualizada por meio de indicadores e metas negociadas referentes a uma carteira de serviços explícita. Combater a “atomização” dos profissionais e promover o trabalho em pequenas equipes era um dos anseios e constituía um enorme desafio de transformação organizacional.Porém havia a percepção da necessidade de adequar e qualificar as instalações a uma nova forma de estar e receber os cidadãos, conferindo dignidade, combatendo o risco e promovendo a funcionalidade e segurança.Estabelecer um sistema de informação moderno e eficaz era outro dos desafios. Eram urgentes registros orientados para a especificidade das intervenções e informação clínica organizada, acessível e “tratável” do ponto de vista da sua análise e monitorização. Foi ainda possível estabelecer um grande consenso em torno da absoluta obrigatoriedade de promover um sistema que reconhecesse as boas práticas em vez do sistemático “nivelar por baixo”, promotor de desmotivação e burn-out.Só assim seria possível dar um salto à frente no desenvolvimento dos CSP, credibilizando-os junto aos cidadãos, promovendo a satisfação profissional dos seus técnicos e tornando-os atrativos para as gerações mais novas em fase de escolha de carreira. Havia, pois, que responder no imediato ao desafio de como fazer melhor e com mais satisfação a partir dos recursos humanos e técnicos disponíveis.

Como é a constituição das equipes e o dia a dia do trabalho? Existem dificuldades para referência dos usuários a serviços especializados ou hospitalares?
Nos atuais agrupamentos de centros de saúde (abrangem 50.000 a 200.000 cidadãos) constituídos na sequência da reforma iniciada em 2005, coexistem em rede vários tipos de unidades funcionais. As Unidades de Saúde Familiar (USF) representam o que de mais visível, inovador e catalisador foi feito em torno desse processo de transformação organizacional. Prestam cuidados na área da medicina e enfermagem familiar. As USF são as unidades elementares de prestação de cuidados de saúde, individuais e familiares que assentam em equipes multiprofissionais, constituídas por médicos, enfermeiros e secretários clínicos.São equipes “que se escolhem” e, como tal, de adesão voluntária. Em média, possuem sete médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar, sete enfermeiros e cinco a seis secretários clínicos. Dotadas de autonomia organizativa, funcional e técnica, são desafiadas a trabalhar um plano de ação elaborado em torno de uma carteira básica de serviços definida nacionalmente pelo Ministério da Saúde, com objetivos e metas contratualizadas anualmente.Uma vez que as USF são avaliadas e respondem quanto ao desempenho solidário da equipe, elas acabam por encerrar em si mesmas uma assinalável capacidade de autorregulação que favorece a otimização do desempenho.Para além das USF, os agrupamentos de centros de saúde possuem ainda outras unidades funcionais. As Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC) prestam cuidados de saúde e apoio psicológico e social de âmbito domiciliário e comunitário, especialmente às pessoas, famílias e grupos mais vulneráveis. São coordenadas por enfermeiros. Cada ACeS – Agrupamento de Centros de Saúde (Os Centros de Saúde e as suas unidades funcionais encontram-se, do ponto de vista gestionário, agrupados em ACeS) possui também uma Unidade de Saúde Pública (USP) e uma Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP). A USP funciona como observatório de saúde da área geodemográfica do ACeS em que se integra, competindo-lhe ainda colaborar no exercício das funções de autoridade de saúde. É composta por médicos de saúde pública, enfermeiros de saúde pública ou de saúde comunitária e técnicos de saúde ambiental. A URAP presta serviços de consultoria e assistência às unidades funcionais referidas nos artigos anteriores e organiza ligações funcionais aos serviços hospitalares. É composta predominantemente por assistentes sociais, psicólogos clínicos, nutricionistas, fisioterapeutas, técnicos de saúde oral e outros profissionais não afectos totalmente a outras unidades funcionais. As redes de referenciação estão estabelecidas consoante as ofertas disponíveis em termos de proximidade geográfica para as diferentes especialidades hospitalares. Cada ACeS está geografica e funcionalmente relacionado com um hospital de referência, sendo a referenciação estabelecida por um sistema informatizado.Os tempos de resposta e a qualidade da informação de retorno dos hospitais para os médicos de Família têm melhorado nos últimos anos. Entretanto foram estabelecidos em lei os Tempos Máximos de Resposta Garantida para consultas e cirurgias, e a obrigatoriedade da sua monitorização e publicitação.

No sistema português, como é a formação dos médicos de Família e Comunidade e demais profissionais?
Os médicos de Família em Portugal são especialistas em Medicina Geral e Familiar que, à semelhança de todos os outros médicos especialistas, frequentaram, após a conclusão do curso de Medicina, um internato (residência) que, para essa especialidade, é de quatro anos. Quanto aos enfermeiros, espera-se que, em breve, a sua ordem profissional estabeleça o perfil e formação especializada em Enfermagem de Família. Nesse momento, são as especialidades de enfermagem comunitária, saúde pública, saúde materna, saúde infantil e de reabilitação que predominam nos cuidados primários.Todas as outras profissões já referidas constituem licenciaturas específicas para cada uma das áreas envolvidas.

No Brasil, e mesmo em outros países com sistemas nacionais mais bem consolidados, a APS permanece pouco atrativa para os profissionais médicos. Essa situação também ocorre em Portugal?
Trata-se duma situação que também se verificou no nosso país. Não podemos afirmar que se encontra definitivamente resolvida, mas está, em boa medida, ultrapassada. Com o progressivo desenvolvimento da especialidade e sua afirmação no espaço do SNS, a especialidade de Medicina Geral e Familiar acabou por constituir uma opção que, não raramente, se coloca como primeira escolha a alguns dos jovens licenciados detentores das melhores classificações. A atual reforma tem também contribuído muito positivamente para um enorme impulso na credibilização e reconhecimento interpares e na valorização social dessa especialidade.Maiores problemas tem enfrentado a especialidade de Saúde Pública.

Está sendo implementado, no Brasil, um programa para melhoria do acesso e da qualidade que prevê o pagamento por desempenho com certificação das equipes de Saúde da Família. Qual sua opinião sobre essa proposta?
Um sistema retributivo sensível à carga de trabalho e ao desempenho, no nível dos CSP, existe apenas nas Unidades de Saúde Familiar que a ele se candidatam e após uma avaliação que ateste um grau de maturação e desempenho que, como tal, o aconselhe.Esse modelo assenta essencialmente numa remuneração mista constituída por um componente fixo e outro variável. O componente fixo corresponde ao salário estabelecido para a respectiva categoria profissional de cada técnico, de acordo com a sua carreira no SNS, e o componente variável estabelece incrementos remuneratórios relacionados com acessibilidade, qualidade técnica e determinados outcomes.Os incrementos da remuneração relacionados com a acessibilidade implicam a dimensão da lista de inscritos (ponderada para a sua distribuição etária), estimulando o aumento delas até determinados limites que não comprometam a qualidade. Envolvem também a realização de domicílios e eventuais alargamentos de horário.Na área da qualidade e orientação para resultados, são atribuídas compensações relacionadas com determinadas atividades específicas (vigilância em planejamento familiar, vigilância da gravidez, vigilância de crianças nos dois primeiros anos de vida, vigilância de diabéticos e hipertensos). Essas equipes são monitorizadas relativamente a um conjunto de indicadores e metas contratualizadas anualmente e fixadas em Carta de Compromisso. Da sua avaliação resultam consequências no componente variável da remuneração e da própria manutenção do regime contratual.Cerca de 44% das atuais USF em atividade funcionam já, e por opção dos seus membros, segundo esse modelo, com ganhos assinaláveis de desempenho, satisfação e poupança global em termos de despesa. Muito embora os profissionais sejam significativamente mais bem remunerados, essa poupança resulta dos ganhos obtidos por meio do combate ao desperdício por via duma organização dos serviços muito mais eficiente. Ou seja, está sendo provado que é possível prestar cuidados de melhor qualidade apostando na capacidade empreendedora das equipes, remunerando melhor os profissionais e gastando menos dinheiro do erário público.