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Arquivo Diário 9 de setembro de 2019

Posicionamentos sobre a Carteira de Serviços da APS

No dia 19 de agosto 2019, o Ministério da Saúde iniciou uma consulta pública  de documento propondo uma ‘Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde Brasileira’ com prazo de oito dias para contribuições dos “profissionais de saúde, gestores, entidades médicas e demais cidadãos”. Para a elaboração da Carteira, a Secretaria de Atenção Básica à Saúde (SAPS) informou ter pesquisado o conteúdo de carteiras de seis capitais brasileiras (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis), e do SNS espanhol.

A consulta recebeu 1,8 mil contribuições submetidas entre 19 e 26 de agosto, sendo 76% submissões de profissionais de saúde, seguidos por gestores municipais (7%), usuários do SUS (5%), estudantes (4%), pesquisadores (2%), gestores estaduais (2%), e outros cidadãos. O MS anunciou que a versão final do documento será divulgada em outubro deste ano.

Posicionamentos

Por um lado, o governo e alguns outros atores, como a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), têm defendido que a Carteira é necessária para ampliar a resolutividade e aferir a qualidade e eficiência dos serviços prestados, além de assegurar que os cidadãos saibam quais serviços estão disponíveis em qualquer Unidade de Atenção Básica (UBS).

Por outro lado, instituições como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), associações de profissionais de saúde como a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) e a Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), e pesquisadores da área denunciam a predominância da abordagem biomédica, limitando o espaço disponível para ações de prevenção de doenças e de promoção da saúde.

Nas palavras da ‘Recomendação No 035, de 23 de agosto de 2019’ do CNS: “o pleno do CNS […] contestou o texto base da Consulta Pública sobre APS, uma vez que este propõe uma integralidade restrita, assistência seletiva e resume-se em estabelecer rol de ações individuais, sem considerar a abordagem biopsicossocial, a ênfase na promoção da saúde e a garantia de acesso à atenção especializada e interdisciplinar com integração da rede assistencial para a continuidade do cuidado, de acordo com as necessidades do indivíduo e da comunidade.”

Segundo reportagem da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), desde 2016 – quando houve uma tentativa de introduzir a Carteira de Serviços de APS na gestão de Ricardo Barros no Ministério da Saúde –  a professora-pesquisadora da Escola, Mariana Nogueira, vem denunciando o foco excessivamente biomédico do instrumento. Hoje, ela alerta: “Nesse contexto, os padrões essenciais não partem de um subsídio da integralidade, no sentido do necessário a atender às demandas sociossanitárias da população, enquanto um direito, mas do possível e do mínimo a ser ofertado”. Além disso, analisa, há uma precarização do vínculo empregatício dos profissionais de APS, através da institucionalização de mecanismos empresariais. Isso tem relação direta com a MP 890, que cria uma agência que nada mais é do que uma legitimação da terceirização da atenção primária e dos interesses empresariais que avançam sobre este campo”.

A ABEn e FNE produziram uma carta de repúdio elencando uma extensa série de críticas à proposta do MS, incluindo: a excessiva brevidade do prazo da consulta, segundo eles inconstitucional; a falta de participação social, sendo que a proposta nunca passou pelo Conselho Nacional de Saúde, máxima instância deliberativa do setor saúde; o desprezo das ações de prevenção de doenças e promoção da saúde, convidando os prospectivos colaboradores a “evitar a inclusão de conteúdo excessivamente preventivo”; o excessivo foco na abordagem biomédica, desprezando os determinantes sociais da saúde, e a abordagem coletiva. A categoria ficou particularmente atingida a partir de referências depreciativas feitas à profissão de enfermagem, e denunciou:

“O desconhecimento profundo do Ministério da Saúde sobre a Enfermagem chega a causar choque quando o texto ressalta a seguinte afirmação sobre o cuidado que a Carteira de Serviços deve ter com a maior categoria profissional de saúde: “realizar uma definição clara do papel da equipe de saúde e principalmente do profissional enfermeiro, que historicamente encontra-se focado na realização de atividades repetitivas e pouco eficazes centradas na promoção e prevenção de saúde em detrimento das atividades curativas e/ou assistenciais”.”

Indignados, os representantes da categoria, que inclui 60% dos profissionais de saúde a nível nacional, defenderam o papel central desenvolvido por elas/es, abrangendo uma variedade de funções, desde prestação de cuidados (curativos e preventivos) até gestão e coordenação da assistência à saúde: “Tal afirmação do Ministério da Saúde denota o mais completo desconhecimento do cotidiano dos serviços e preconceito em relação ao trabalho árduo, responsável e eficiente da enfermagem, em especial do enfermeiro.”

O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e Conselhos Regionais de Enfermagem reiteraram em nota a indignação das associações de enfermagem, destacando que “ao atribuir as atividades de gestão do cuidado a uma única categoria profissional, o texto da consulta desconsidera a perspectiva do trabalho na equipe multiprofissional.” Porém, não discordaram da ideia de ter uma carteira de serviços, sendo que solicitaram a reabertura do prazo, e já na nota incluíram contribuições ao conteúdo da carteira.

A Rede APS fez severas críticas à proposta da carteira de serviços através de um texto elaborado por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (PPGSP/ENSP/Fiocruz) e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FM/UFRJ), e apoiado por outros integrantes da Rede. Segue a carta elaborada:

Comentários sobre a carteira nacional de serviços para a APS sob consulta

“Uma carteira de serviços reflete o modelo assistencial de APS que se deseja implementar. Nosso modelo de Saúde da Família com equipe multiprofissional e abordagem territorial e comunitária tem tido impactos positivos na saúde da população evidenciados em diversas pesquisas.

O texto introdutório da carteira proposta diz que esta se baseia em quatro dos atributos da APS (Acesso, Longitudinalidade, Integralidade e Coordenação do Cuidado) conforme Bárbara Starfield. De fato, a carteira colocada em consulta, centra-se na lista de uma série de ações a serem ofertadas pouco explicitando os outros três: acesso, longitudinalidade e coordenação. Em nenhum momento incorpora os atributos primordiais de orientação familiar, orientação comunitária e competência cultural propostos por Bárbara. Atributos cruciais tanto para o cuidado individual quanto para uma abordagem territorial e populacional para a promoção da saúde e prevenção de doenças.

Uma APS efetiva deve buscar o equilíbrio entre o cuidado individual e o cuidado coletivo. Desta abordagem integral dependem os efeitos positivos da APS na saúde da população. A promoção da participação social, uma das dimensões cruciais da atenção primária integral, seja em seu componente individual de participação do paciente seja em seu componente comunitário não é mencionada em qualquer momento.

O foco explicitado para o estabelecimento da carteira de serviços está no alcance de melhor eficiência, quando deveria ser em proporcionar melhor acesso e qualidade. Parte-se de uma premissa equivocada que a eficiência geraria qualidade, como expressado na seguinte frase “…pilar fundamental para atingirmos melhor eficiência, resultando em maior qualidade da atenção à população, aliado a ganhos econômicos nominais que garantirão a sustentabilidade do sistema de saúde …”  A busca da eficiência em si poderia reduzir custos, mas não gera qualidade. Qualidade resulta de um conjunto amplo de iniciativas articuladas e seu alcance em geral implica em uso de recursos adicionais. O foco nos aspectos econômicos faz subentender que a carteira tem por objetivo, não primordialmente melhorar a qualidade, mas servir como instrumento para estabelecer contratos com o setor privado. Esta parece ser a intenção com alinhamento claro à política de austeridade fiscal e restrição de direitos sociais e de destruição da seguridade social.

A integralidade proposta é restrita. Expressa-se em resumido rol de ações individuais sem considerar a abordagem biopsicossocial, a ênfase na promoção da saúde e a garantia de acesso à atenção especializada conforme necessidades, com integração da rede assistencial para a continuidade do cuidado.

 A especialidade em medicina de família e comunidade parece ter sido abolida na carteira de serviços proposta. O termo utilizado é médico de família, sem comunidade. Não se trata apenas de desconsiderar o atributo de orientação comunitária, mas também de mudar o foco desta especialidade médica que é crucial para a APS integral de qualidade, de fato robusta, que tanto tem se empenhado para se legitimar como especialidade. O descaso pela denominação da especialidade na carteira enfraquece a identidade e a posição dos médicos de família e comunidade.

Chama também atenção a inclusão de temas não consensuais, mesmo entre médicos de família e comunidade, como a ênfase na lista de pacientes desterritorializada como se fora uma forma de “valorização do trabalho de longo prazo, de forma continuada e com fortalecimento do vínculo”. Listas de pacientes têm sua origem como instrumento para remuneração, outro componente necessário para o estabelecimento de um contrato com um prestador externo qualquer. O texto afirma literalmente “…conceitos como o de lista de pacientes devem definitivamente ser introduzidos na APS brasileira …”.

O texto introdutório no eixo acesso define amplo conjunto de regras de organização do trabalho das equipes que extrapolam a proposição de uma carteira adequada de serviços para a APS integral de qualidade e engessa o trabalho das equipes. As propostas de organização dos horários de trabalho de cada tipo de profissional nas UBS, aproximam-se de modelos de plantonista: fragmentam fortemente o trabalho em equipe, rompem o vínculo com a população adscrita, quebram a longitudinalidade da relação interpessoal e afastam os profissionais da convivência da realidade do território. Não garantem um bom equilíbrio no atendimento das demandas espontâneas e programadas e programáticas.

Há ausência completa de menção da ação dos agentes comunitários de saúde, elo crucial da articulação das equipes com as populações, na busca ativa, na facilitação do acesso para famílias vulneráveis, nas ações de saúde coletiva, na educação em saúde, na promoção da participação social.

A carteira se divide apenas em: Atenção à Saúde do Adulto/Idoso, Atenção à Saúde da Criança, Procedimentos na APS e Saúde Bucal. Apresenta uma listagem totalmente desarticulada de ações em áreas totalmente diferentes, que impede a organização da carteira nas UBS e uma análise da suficiência do conjunto do conteúdo. As ações estão listadas em ordem alfabética: mistura desde cuidados paliativos a cuidado no puerpério e análise da situação epidemiológica, sem qualquer estruturação programática. Atenção à Saúde do Adulto/Idoso engloba tudo ficando dificílimo reconhecer quais as ações que de fato devem ser oferecidas por ciclo de vida / ou princípios da APS e da medicina de família e comunidade. A aversão aos programas chegou ao máximo de listar as ações em ordem alfabética de forma desarticulada.

Causou espanto incluir na carteira proposta a menção sobre identificar posse de armas e orientar para guardar em segurança. Talvez este item seja proveniente de um instrumento de avaliação estadunidense que já foi adaptado no Brasil em duas versões (PCATool). Na primeira versão feita por Celia Almeida e James Macinko esta pergunta não foi incluída pois foi feita uma adaptação cultural. Neste sentido, um aspecto precisa ficar claro. Uma coisa é uma pergunta em um questionário de pesquisa. Outra é inserir na norma nacional dando por certo, por correto, que o porte de armas deve ser ou será difundido.

Uma carteira de serviços em APS forte, integral, de qualidade não pode restringir-se a práticas clínicas individuais como o que está sendo proposto nesta carteira sob pena de apenas promover a medicalização sem melhorar nem a qualidade, nem a eficiência. O cuidado oportuno, de qualidade e a abordagem populacional territorial com ação comunitária e promoção da participação social são componentes cruciais de uma atenção primária à saúde integral.”

Ligia Giovanella e Cassiano Franco em 21 de agosto de 2019, Rio de Janeiro

Seguem as duas versões do PCATool validadas no Brasil, em 2006 e em 2010:

  • Almeida, Celia; Macinko, James. Validação de uma metodologia de avaliação rápida das características organizacionais e do desempenho dos serviços de atenção básica do sistema único de saúde (SUS) em nível local. Brasília-df: Organização Mundial da Saúde, 2006. 215 p. (Série técnica desenvolvimento de sistemas e serviços de saúde;10).
  • Departamento de Atenção Básica – Ministério da Saúde. (2010). Manual do Instrumento de Avaliação da Atenção Primária à Saúde – Primary Care Assessment Tool PCATool-Brasil. Brasília: Ministério da Saúde do Brasil.

 

Por Diana Ruiz e Valentina Martufi – doutorandas que contribuem para a REDE APS