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Arquivo Diário 16 de setembro de 2019

Programa Médicos pelo Brasil

Em novembro de 2018, o governo de Cuba anunciou a finalização de sua participação no Programa Mais Médicos no Brasil, após questionamentos feitos pelo presidente eleito Jair Bolsonaro sobre a qualificação dos médicos cubanos e a exigência de revalidação dos diplomas no país (SEABRA, 2018).

Após a saída dos médicos intercambistas, muitos municípios ficaram com déficit desses profissionais. Segundo a pesquisadora Ligia Bahia entrevistada pelo jornal “O Globo”, após seis meses da saída dos médicos cubanos, quatro em cada dez cidades brasileiras (42%) onde atuavam esses médicos não tinham conseguido preencher todas as vagas (REIS, 2019).

Em resposta a esse déficit, os estados do Ceará, Espirito Santo e Tocantins e o município de Campinas (SP) desenharam seus próprios planos para preencher as vagas ociosas. Esses planos contemplam bolsas de estudo para médicos que realizem residência ou especialização em medicina de família e comunidade para atuação em unidades básicas de saúde (COLLUCCI, 2019).

Em 1º de agosto deste ano, depois de vários meses anunciando o desenho de uma nova proposta que substituiria o Programa Mais Médicos, o governo federal publicou a Medida Provisória (MP) n° 890/2019 que institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde, e a criação do serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (BRASIL, 2019).

Segundo o texto da Medida Provisória, a finalidade do Programa Médicos pelo Brasil é aumentar a prestação de serviços médicos em locais de difícil acesso ou alta vulnerabilidade e fomentar a formação de médicos especialistas em medicina de família e comunidade no âmbito da atenção primária no Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2019). Na MP ficou especificado que os locais de difícil provimento correspondem a municípios de pequeno porte populacional, baixa densidade demográfica e distantes de centros urbanos, conforme classificação do IBGE, Distritos Sanitários Especiais Indígenas e comunidades ribeirinhas. Os locais de alta vulnerabilidade foram definidos como municípios com alta proporção de pessoas cadastradas nas equipes de saúde da família e que recebam benefícios financeiros do Programa Bolsa Família, benefício de prestação continuada ou benefício previdenciário com um valor máximo de dois salários mínimos (BRASIL, 2019).

No âmbito do programa serão contratados médicos de família e comunidade e tutores médicos. Para participar do processo seletivo para o Programa, os médicos devem estar inscritos no Conselho Regional de Medicina e os tutores médicos devem ser especialistas em Medicina de Família e Comunidade ou em Clínica Médica (BRASIL, 2019).

O processo seletivo para tutores médicos consiste em uma prova escrita eliminatória e classificatória. O processo seletivo para médico de família e comunidade está composto por uma prova escrita; curso de especialização com duração de dois anos realizado por instituição de ensino parceira com atividades de ensino, pesquisa e extensão e componente assistencial com integração ensino-serviço; e, prova final escrita para habilitação do título de especialista em medicina de família e comunidade. As atividades realizadas durante o curso de formação serão supervisadas pelo tutor médico (BRASIL, 2019).

As atividades desenvolvidas durante o curso de formação não representam nenhum vínculo empregatício. Durante o curso o médico receberá uma bolsa-formação (BRASIL, 2019) de R$ 12mil, gratificação para locais remotos de R$ 3mil e gratificação para DSEI, ribeirinhas e fluviais de R$ 6mil. Após concluir o curso e ser habilitado como médico de família e comunidade a contratação será com vínculo CLT por até 21 mil reais nos primeiros três anos e até 31 mil reais depois de 10-12 anos no programa (BOLSONARO, MANDETTA, 2019).

A maior parte das vagas deste programa estarão nas regiões norte e nordeste. Segundo os dados apresentados pelo presidente e pelo ministro da saúde existirão 7.328 novas vagas em áreas rurais ou remotas, enquanto outras áreas de alta vulnerabilidade (regiões urbanas e intermediárias adjacentes) teriam uma diminuição de 7.163 vagas (BOLSONARO E MANDETTA, 2019). O Programa será executado pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps, (BRASIL, 2019) questão que será objeto de um boletim posterior.

Após a divulgação da Medida Provisória, algumas entidades analisaram o programa proposto e publicaram suas considerações. A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (2019) destacou que, apesar das críticas do governo ao Programa Mais Médicos, a nova proposta mantém algumas das suas caraterísticas a exemplo da articulação de atividades de ensino, extensão, e integração ensino-serviço, a vinculação com bolsa, recolhimento junto ao INSS e isenção de Imposto de Renda. No entanto, questões muito relevantes para a melhoria da qualidade da atenção e que eram contempladas no PMM, como a adequação da estrutura física das unidades de atenção e as mudanças na formação médica, parecem não ser parte da proposta atual do governo.

A Sociedade Brasileira de Médicos de Família e Comunidade (SBMFC, 2019) também salientou que além do provimento de médicos é necessário fortalecer a infraestrutura das unidades de saúde, a ampliação da carteira de serviços, o acesso a serviços de apoio diagnóstico e a ampliação da formação de profissionais enfermeiros(as) especialistas em APS para melhorar a qualidade da atenção. Questões que não parecem estar sendo contempladas no Programa Médicos pelo Brasil.

A SBMFC (2019) reconheceu como aspecto positivo do programa a adoção de critérios específicos para definir os municípios aptos para aderirem a ele. No entanto, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (2019) destacou que os mesmos critérios do IBGE e da OCDE utilizados para identificar os municípios em alta vulnerabilidade no Programa Médicos pelo Brasil eram os usados no Programa Mais Médicos, porém no PMM existia uma maior complexificação para a distribuição dos profissionais, levando em conta também a diversidade regional, a construção compartilhada com a Frente Nacional de Prefeitos e com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde e o fato de que a maior parte da população do país mora na periferia das grandes cidades.

A SBMFC (2019) também reconheceu a importância da mudança do vínculo laboral dos médicos. Porém, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (2019) destacou a contradição do governo federal ao propor a vinculação dos médicos mediante CLT, enquanto promove uma reforma trabalhista que desmonta a seguridade social e os direitos dos trabalhadores.

No que diz respeito ao eixo formação, que era um dos componentes importantes do PMM, o novo programa promove a formação de especialistas em medicina de família e comunidade em dois anos e com bolsas de estudo muito mais altas do que nos programas tradicionais de residência. Isso pode ocasionar um maior esvaziamento dos programas de residência na área, os quais já apresentam dificuldades para ocupar as vagas, o qual pode levar ao desmonte da Residência em Medicina de Família e Comunidade (REDE NACIONAL DE MÉDICAS E MÉDICOS POPULARES, 2019). Sobre essa questão, a SBMFC (2019) esclareceu que considera que a proposta do curso de especialização com duração de dois anos e carga horária de 60 horas semanais pode ser suficiente sempre que conte com o apoio pedagógico da SBMFC, tanto na elaboração dos conteúdos quanto na supervisão e avaliação dos profissionais a SBMFC.

                Além disso, a SBMFC (2019) considera que a estratégia de formação de especialistas proposta no Programa Médicos pelo Brasil é válida somente neste contexto de difícil provimento de profissionais, portanto deve ser uma medida provisória a ser utilizada no máximo nos próximos três anos, enquanto é realizado um processo mais amplo de mudança no marco regulatório de formação de especialistas no país, onde 40% das vagas de residência médica devem ser destinadas à medicina de família e comunidade. Após 2022 a formação como especialistas deve se dar unicamente pela via da residência médica.

No que tange à seleção de tutores, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (2019) manifestou sua preocupação com a possibilidade de que médicos com residência em clínica médica possam atuar como supervisores porque esses profissionais têm uma formação estritamente hospitalar sem vivencia comunitária. No entanto, a SBMFC destacou que levando em conta que não se tem a quantidade suficiente de especialistas em Medicina de Família e Comunidade para exercer como tutores é razoável a abertura para que profissionais com Especialização em Clínica Médica realizem essa supervisão. Porém, a SBFMC (2019) sugeriu que sejam priorizados os profissionais com título de especialista em Medicina de Família e Comunidade, e somente se o número deles não for suficiente, dar preferência aos especialistas em Clínica Médica com experiência em serviços de Atenção Primária à Saúde, quem ademais deveriam partilhar suas atividades e ser supervisados pelos tutores especialistas em Medicina de Família e Comunidade.

Levando em conta o conteúdo da medida provisória e as análises realizadas pela Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade observa-se que o Programa Médicos pelo Brasil retoma algumas caraterísticas do Programa Mais Médicos. No entanto, parece estar limitado ao provimento de médicos e apresenta mudanças controversas que poderiam afetar a qualidade da formação e a sustentabilidade dos programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade. Adicionalmente, não leva em conta outras estratégias para a melhoria da qualidade da atenção e não parece ter sido construído a partir de um processo amplo de participação. 

 

Referências

Bolsonaro, Jair e Mandetta, Luiz Henrique. Médicos pelo Brasil. Saúde em Família. Ministério da Saúde Brasil (Mimeo).

Brasil, Presidência da República, Secretaria-Geral, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Medida Provisória nº 890, de 1º de agosto de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde, e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv890.htm Acesso em: 6 de setembro de 2019

Collucci, Cláudia. Cidades desenham programas para substituir Mais Médicos. Folha de São Paulo 15 de junho de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/cidades-desenham-programas-para-substituir-mais-medicos.shtml Acesso em: 6 de setembro de 2019

Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. Nota da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares sobre a proposta do Programa Médicos pelo Brasil.  Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/05/rede-de-medicos-populares-denuncia-as-contradicoes-do-programa-federal/ Acesso em: 9 de setembro de 2019

Reis, Vilma. Mais médicos: Após saída de cubanos, 42% das cidades têm vagas abertas. Abrasco. 27 de maio de 2019. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/opiniao/mais-medicos-apos-saida-de-cubanos-42-das-cidades-tem-vagas-abertas/40961/ Acesso em: 6 de setembro de 2019

SBMFC, Sociedade Brasileira de Medicina de Familia e Comunidade. Análise da SBMFC em relação ao Programa Médicos pelo Brasil. 14 de Agosto de 2019. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/analise-da-sbmfc-em-relacao-ao-programa-medicos-pelo-brasil/ Acesso em: 6 de setembro de 2019

Seabra, Catia. O fim da parceria Cuba e Brasil no Mais Médicos. Folha de São Paulo. 14 de novembro de 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/08/governo-lanca-medicos-pelo-brasil-em-substituicao-ao-mais-medicos.shtml Acesso em: 6 de setembro de 2019

Por Diana Ruiz e Valentina Martufí – doutorandas que contribuem para a REDE APS