Hoje consegui ler o texto do médico de família espanhol Juán Gervás , pessoa que muito estimo, respeito e tenho como referência, que foi re-compartilhado em diversas redes sociais de comunicação nos últimos dias.

Mas o texto tem várias imprecisões.

Veja, o modelo de policlínicos não era soviético…ele já existia não só na Rússia czarista antes Revolução Russa, como em outros países, pois foi um modelo que foi implantado em vários lugares do mundo pela Fundação Rockefeller, no início do século XX, claro…onde se havia força de trabalho para tal intento, ou mudanças na formação médica, patrocinada pela própria Fundação Rockefeller, que davam substrato à mudança.

Esse mesmo modelo foi experimentado no Brasil, no inicio do século XX, com várias modelagens, na criação dos primeiros centros de saúde, ou na estruturação do Serviço Especial de Saúde Publica, da Fundação SESP, a partir da década de 1940.

Era também uma medicina de setor, pois era baseada em distritos sanitários, e foi muito importante porque construiu a cultura moderna de centros de saúde…onde os famosos policlínicos eram algumas modalidades destes.

Dawson, um cirurgião, ganhou prestígio na Primeira Guerra Mundial porque adotou estes princípios da medicina de setor, organizando hospitais de campanha no front europeu, e tendo uma estratégia de tendas descentralizadas apoiadas por estes hospitais de campanha regionalizados.

Quando convidado pelo governo inglês para desenvolver uma proposta de reforma na saúde do Reino Unido combalido pela Grande Guerra, com seu grande afluxo de doentes pós confronto, Dawson propôs um relatório, que levou o seu nome, onde adotou os mesmos princípios da medicina de setor, inclusive incorporando noções de territorialidade e tendo referência nos centros de saúde, mas capilarizando uma idéia de rede de saúde e prestação de assistência em saúde com serviços de atenção domiciliar, baseados em clínicos gerais, ligados a estes centros de saúde.

A “sacação” de Dawson foi “radicalizar” a exploração das potencialidades de vínculo e responsabilização sanitária dentro de um território definido, com equipes com clientelas menores, moduladas, adscritas a um profissional, tendo retaguarda de toda outra qualidade de serviços.

Assim o modelo britânico foi um melhoramento do modelo rockefelleriano, e não uma “vertente distinta”, como o texto do Gervás pode levar a sugerir.

Na época do fim da URSS, diante da grande insatisfação popular com os rumos de meados do governo Yeltsin, nos anos de 1990 (não esqueçamos que o fim da URSS foi um Golpe de Estado…a maior parte da população queria abertura política e econômica, mas sem o fim da URSS, e não queriam implantação de uma plataforma neoliberal radical como foi feita), um dos maiores fatores de críticas que se tinha foi o desmantelamento do sistema de saúde soviético… que mesmo com modelo de trinca de especialistas na porta e policlínicos era considerado um excelente modelo. A medicina russa foi suporte de incorporação técnico-científica para vários países das Américas (Cuba), Leste Europeu, Ásia e África.

A questão é que o modelo de trinca de especialistas na porta dos policlínicos, sem serviços de atenção domiciliar ou consultórios de família é um modelo mais oneroso em perspectiva de custo-efetividade, mas se você tiver muitos recursos disponíveis ele pode ser eficiente, pois tem também noção de territorialidade. Claro que clinicamente tende a ser menos integral, mas ao mesmo tempo pode proporcionar maior disponibilidade de força de trabalho se bem desenhado (no Brasil temos gente achando que estamos fazendo “o máximo” colocando um clinico/MFC para atender 5.000 pessoas, ou mais, em áreas extremamente vulneráveis…e achando que estamos superando “modelo bolchevique”. Pura propaganda ideológica neoliberal).

Cuba até o final dos anos de 1970 tinha um modelo semelhante ao soviético. Mas vivia já as dificuldades dos custos crescentes de seus serviços, o que gerava grande pressão ao seu sistema. No famoso discurso de Fidel aos estudantes de Medicina, no inicio dos anos de 1980, iniciou uma importante mudança na formação medica cubana, valorizando a formação de médicos gerais integrais, e iniciou a reforma de seu sistema em 1984, sob liderança de sanitaristas como o Dr Ordoñez, e outros. Graças a esta mudança e à expansão de seu aparelho formador numa outra lógica, conseguiram ter um sistema de saúde mais efetivo, uma prática clínica menos biomédica e mais integral, e isto os auxiliou a superar os difíceis anos do período especial, após a queda do Muro de Berlim. Sabemos que um dos importantes fatores de legitimidade do regime cubano são suas conquistas e avanços na saúde publica, podendo um país pobre se dar ao luxo de práticas inclusive de internacionalismo médico.

Interessante pensar que a não viabilização da proposta de Dawson, no Reino Unido, ainda na década de 1920 se deu por um elemento político, que consistia na oposição da maior parte dos médicos…em especial dos clínicos gerais, que foram os principais opositores inclusive mais tarde na criação do NHS, em 1948… tensão que só conseguiu ser superada com as reformas no ensino medico inglês em 1957 e vinda de dezenas de milhares de médicos das ex colônias britânicas nos anos de 1960. Assim sempre houve uma tensão entre o liberalismo político e econômico e a socialização da medicina e da saúde…algo que toma contornos mais dramáticos em plena ascensão de ultra-liberalismo, da extrema-direita no mundo todo, e disputas baseadas em “guerras híbridas”, com batalhas que envolvem informação, manipulação e pós-verdade.

Assim acho que apesar de um excelente texto trazido pelo Gervás, que dá elementos para uma crítica ao pacote de ” nova cesta básica de saúde” que fundações internacionais e a própria OMS, hoje refém dos EUA, apontam como “alternativa”, no escamoteando debate de cobertura universal de saúde (que só parece ser algo “bem intencionado”), o texto do Gervás peca pela pouca precisão com o elemento histórico, e uma certa reprodução de preconceitos políticos e ideológicos.

Esta critica a matrizes de pensamento eurocêntricos sem uma melhor noção de historicidade sempre foi feita pela Medicina Social Latino Americana e pela Saúde Coletiva brasileira.

Assim meu texto se filia a uma reflexão feita por um médico de família e comunidade, mas que bebe das fontes e elementos das ciências sociais e humanas de nossa latinoamerica.

Vinicius Ximenes
Medico de Familia e Comunidade
Sanitarista
Servidor da Secretaria de Saúde do DF – MFC Recanto das Emas
Professor Universitário

Texto publicado na página do CEBES -http://cebes.org.br/2019/10/o-modelo-nao-era-sovietico-era-rockefeller-uma-critica-ao-texto-de-gervas/http://cebes.org.br/2019/10/o-modelo-nao-era-sovietico-era-rockefeller-uma-critica-ao-texto-de-gervas/