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Arquivo Mensal fevereiro 2020

Carta aberta à Secretaria Municipal de Saúde e à Prefeitura do Rio de Janeiro.

Prezados,

A Atenção Primária à Saúde (APS) constitui componente fundamental de diversos sistemas de
saúde no mundo, sendo capaz de resolver a grande maioria das demandas da população,
atuando na promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação. Desde 2006,
a Estratégia de Saúde da Família constitui o primeiro contato da população com a rede SUS
que deve ser realizado prioritariamente pelas equipes de Saúde da Família, responsáveis pela
coordenação do cuidado, desenvolvendo trabalho multiprofissional, no contexto do território, de
forma longitudinal, voltado para a família e comunidade, articulando dimensões biológicas,
psicológicas e culturais no cuidado.

Em 20 anos o percentual da população brasileira coberta pela Estratégia de Saúde da Família
(ESF) ampliou-se em 15 vezes. O município do Rio de Janeiro iniciou o processo de expansão
da ESF em 2009, chegando a alcançar 75% de cobertura ao fim de 2016. Entretanto, nos últimos
três anos, o orçamento municipal destinado à saúde vem sendo reduzido, com especial impacto
na ESF. Como consequência mais de um milhão de cidadãos cariocas tiveram seu direito a
cuidados de saúde prejudicados, tanto em acesso quanto em qualidade, com a extinção de
diversas equipes da ESF em toda a cidade.

Desde o início de 2019 esse cenário vem piorando de forma acelerada. Neste momento, nas
áreas programáticas (AP) 2.1 (Zona Sul), 3.1 ( Penha, Ilha do Governador, Ramos, Bonsucesso,
Olaria, Manguinhos, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil, Parada de Lucas, Vigário Geral,
Jardim América, Complexo do Alemão, Maré) e 3.3 (Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura,
Cavalcanti, Engenheiro Leal, Honório Gurgel, Madureira, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz,
Quintino Bocaiúva, Rocha Miranda, Turiaçu e Vaz Lobo) os profissionais da ESF estão sendo
demitidos para serem recontratados com diminuição dos salários. Não sabemos quantos profissionais não serão recontratados, muitos dos quais atuam há anos junto a famílias e comunidades. Assim, cerca de 70 Clinicas da Família tiveram seu funcionamento prejudicado,
atingindo diretamente mais de 2 milhões de pessoas.

Na AP 4.0 (Anil, Barra da Tijuca, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia Jacarepaguá, Itanhangá, Pechincha, Praça Seca, Tanque,
Taquara) a proposta da Secretaria Municipal de Saúde é a contratação de profissionais na
condição de pessoa jurídica, o que significa perda de todos os direitos trabalhistas garantidos na
Consolidação das Leis do Trabalho e precarização da relação de emprego, o que afeta
negativamente a pessoalidade e a construção do vínculo, características da ESF/APS. O
mesmo processo atinge trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) das
referidas APs, impactando no atendimento de pessoas com sofrimento/transtorno mental dos
territórios adscritos.

Caso a política de subfinanciamento da Atenção Primária não seja modificada pela prefeitura
do Rio de Janeiro, em breve essa mesma situação será reproduzida nas demais áreas da cidade.
O desinvestimento na APS acarreta dificuldade de acesso, deteriora a qualidade do atendimento
prestado, resultando em maiores índices de adoecimento e de complicações associadas a
doenças crônicas e agravos tardiamente abordados, com impacto negativo na qualidade de vida
da população e aumento das taxas de exames, procedimentos e internações hospitalares,
gerando maiores custos para o sistema de saúde.

O enfraquecimento da rede de APS do município do Rio de Janeiro afeta fortemente a formação
de novos profissionais. A rede municipal de saúde, de acordo com diretrizes conjuntas do
Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, representa espaço de formação profissional,
recebendo alunos de inúmeras instituições de ensino para treinamento em serviço e formação
de profissionais ccomprometidos com o SUS. Diversos alunos de cursos de graduação e pós
graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) realizam estágios curriculares nas
unidades da APS da rede municipal. Somente o Departamento de Medicina em Atenção Primária à Saúde
(DMAPS) da Faculdade de Medicina da UFRJ tem, atualmente, cerca de 220 alunos inseridos
nas Clínicas da Família e nos CAPS municipais.

Dentro da parceria docente-assistencial do DMAPS com a Subsecretaria de Promoção, Atenção
Primária e Vigilância em Saúde, destaca-se o internato integrado de Medicina de Família e
Comunidade (MFC), Saúde Mental e Saúde Coletiva, com quase 120 alunos distribuídos por 17
Clínicas da Família que atuam sob supervisão dos médicos preceptores da residência médica
em MFC da rede municipal, um bem sucedido projeto de integração ensino-serviço,
internacionalmente premiado no final do ano de 2018.

Através desta carta, o DMAPS/ UFRJ e os professores do internato integrado de Medicina de
Família e Comunidade (MFC), Saúde Mental e Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da
UFRJ reiteram a importância de uma APS forte, unindo-se a diversas entidades acadêmicas e
profissionais na solicitação da revisão do provimento financeiro e das regras de contratação das
equipes de Saúde da Família pela atual Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, visto
os inúmeros, graves e lamentáveis prejuízos presentes, e futuros, acarretados pela não inclusão
da rede de Atenção Primária a Saúde como área prioritária de investimento dos recursos
municipais. Recursos em saúde não são gastos e sim investimentos em melhoria de qualidade
de vida, em dignidade.

Defender uma Atenção Primária forte é defender o SUS. Defender o SUS é defender o direito à
cidadania, é defender os Direitos Humanos. Cuidar da saúde é um dos primeiros, e principais,
passos para se cuidar das pessoas.

Coordenação e corpo docente do Internato Integrado de Medicina de Família, Saúde
Mental e Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e Departamento de Medicina em Atenção Primária em Saúde da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2020.

Veja documento  Carta aberta SMSRJ fev 2020 v2– 

Mudanças em equipes multidisciplinares no SUS opõe governo e especialistas

Ministério da Saúde diz que medida traz autonomia aos gestores; pesquisadores veem risco de fim .

O novo Coronavírus ainda domina os noticiários de saúde, mas existe um outro tema polêmico no âmbito do SUS: um possível fim das equipes Multidisciplinares.

Criado em 2008 o modelo NASF (Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica é composto por vários profissionais como assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas,psicólogos e educadores físicos, que atuam em conjunto com médicos e enfermeiros dentro das equipes de saúde da famílias ou das UBS (Unidades Básicas de Saúde). Os fisioterapeutas, por exemplo, orientam pacientes e familiares no dia a dia dos cuidados de pessoas que tiveram sequela de AVC ou traumas, fazendo, inclusive, atendimento domiciliar. Os nutricionistas orientam diabéticos e hipertenso no controle das doenças por meio de uma dieta adequada. E assim por diante.

ocorre que, um novo modelo de financiamento da atenção primária, aprovado no ano passado, o Ministério da Saúde revogou várias normas, entre elas as que definiam os parâmetros e custeio desses núcleos de apoio.

No fim de janeiro, uma nota do Ministério da Saúde informou que as equipes multidisciplinares deixariam de seguir o modelo e o gestor municipal passará a ter autonomia para compô-las, ou seja, vai contratar, a carga horária e outros arranjos, de acordo com as necessidades em saúde da população atendida.

Segundo o ministério, o novo modelo de financiamento levará em conta tanto a população cadastrada nas UBSs quanto o resultado dos indicadores de qualidade relacionados à atuação das equipes. Pela primeira vez haverá pagamento por desempenho.

O ministério garante que na transição para o novo modelo não haverá prejuízo nos valores transferidos para os municípios.diz ainda que as projeções se repasses para este ano já consideraram os valores referentes ao NASF.

No entanto os médicos de família e pesquisadores, dizem que, sem incentivos federais para que os municípios componham equipes multiprofissionais, o modelo poderá ser esvaziado ou mesmo extinto. 

Segundo Lígia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), historicamente, o incentivo financeiro federal foi essencial para a implementação da política de saúde direcionada a um modelo assistencial de atenção integral .

“A Estratégia Saúde da Família teve uma expansão enorme no Brasil por conta, principalmente, dos incentivos financeiros do Ministério da Saúde que impulsionaram o estabelecimento de equipes. Com o tempo isso foi incorporado ao NASF. Agora, sem incentivo específico, o risco maior que temos é da demissão desses profissionais e também a redução da composição das equipes, disse ela a um dos portais de notícias da Fiocruz.

O mesmo pensa o médico de família Aristóteles Cardona Júnior, que atua na Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares. ” Por mais bem intencionadas que as gestões municipais sejam, por mais que digam que não haverá cancelamento, não vai demorar para que extingam os núcleos multiprofissionais. os gestores não terão mais amarras, nenhuma obrigação de destinar verba para esta política, o dinheiro será sugado por área que aparentemente possam apresentar demanda social maior e os municípios vão abrir mão desses profissionais diante da pressão.” Ainda que o ministério garanta que não haverá extinção das equipes multidisciplinares na atenção primária, as preocupações de Giovanella e Cardona são justificáveis. A área da saúde acumula perdas desde A Emenda Constitucional 95 que congelou até 2036 os gastos federais. E muitas prefeituras estão quebradas, investindo muito além da obrigação constitucional em saúde.  Por outro lado, diversos estudos apontam que o SUS tem espaço para se tornar mais eficiente e resolutivo. A mudança do modelo de financiamento da atenção primária pode ser um dos caminhos? Ainda não dá para saber.Só o tempo, estudos rigorosos de acompanhamento da nova política e, sobretudo, controle social, poderão dizer .

FOLHA DE S. PAULO – Coluna da Cláudia Collucci – Jornalista especializada em saúde 

Discussões e posicionamentos sobre a Portaria nº 2.979 para o novo financiamento da APS

A proposta do Ministério da Saúde (MS) de mudança do financiamento da atenção primária à saúde (APS) foi aprovada em reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no dia 31 de outubro, e formalizada no dia 12 de novembro 2019 através da Portaria n° 2.979[i]. Os debates sobre seus efeitos potenciais, positivos ou negativos, ainda seguem.

O modelo de financiamento proposto inclui pagamentos por capitação ponderada e por desempenho, além de incentivos para estratégias e programas. A capitação ocorreria segundo os registros de população cadastrada nas equipes de Saúde da Família (eSF), ponderada com base na vulnerabilidade socioeconômica – determinada pela proporção de pessoas cadastradas que recebem algum benefício financeiro –, pelo perfil demográfico dos cadastrados – em particular os menores de 5 anos e maiores de 65 –, e pela classificação geográfica rural-urbana definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[ii].

O pagamento por desempenho deve ser baseado no monitoramento quadrimestral de indicadores clínicos e epidemiológicos, a serem definidos em cada ano: inicialmente, em 2020 seriam focados nas gestantes, saúde da mulher, saúde da criança e nas doenças crônicas. Em 2021, seriam adicionados indicadores relacionados a Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), tuberculose e saúde bucal, e subtraídos aqueles referentes a gestantes e doenças crônicas. Em 2022, seriam mantidos somente os indicadores de IST, adicionando outros para saúde mental e doenças crônicas, além de alguns “Indicadores Globais”. Na Portaria n° 3.222 de 10 de dezembro 2019[iii], o MS determinou quais seriam os indicadores a serem medidos em 2020 e quais os critérios para a definição dos indicadores de 2021 e 2022.

Quanto aos incentivos para ações específicas e estratégicas, serão priorizados o Saúde na Hora, a informatização, e a formação e residência médica multiprofissional. Além disso, serão financiadas ações de saúde bucal e promoção da saúde, além de estratégias específicas como o Consultório na Rua, as Equipes Ribeirinhas, as UBS Fluviais, as Microscopistas, a Saúde Prisional e do Adolescente.

Vejam a seguir o posicionamento de alguns atores sobre esse tema.

Posicionamentos a favor do novo modelo de financiamento da APS

Os principais atores que se posicionaram publicamente a favor da mudança no financiamento da APS, além da própria Secretaria de Atenção Primária à Saúde do MS (SAPS/MS), foram o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e a Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC).

Ao apresentarem o projeto de novo financiamento para a APS, em outubro de 2019 em Brasília, os representantes da SAPS/MS defenderam que os objetivos do mesmo são valorizar a responsabilização das equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e demais equipes de APS; estimular o aumento da cobertura real da APS através de cadastro, principalmente entre as populações vulneráveis; fortalecer os atributos da APS; buscar melhorar o desempenho da APS e incentivar avanços na informatização, na qualidade da atenção, na promoção da saúde e prevenção de doenças, e no cuidado das populações de contextos específicos como as da Região Amazônica, ou a população em situação de rua.

Sem explicar como foi elaborado o cálculo, os representantes da SAPS/MS apresentaram uma síntese dos resultados esperados com esta mudança de modelo do financiamento, estimando que a maioria dos municípios ganharia um total de 2,6 bilhões de reais, enquanto a minoria perderia 290 milhões de reais. Além disso, estimaram que, entre 2019 e 2020, haveria um aumento de 11% no orçamento da APS, sendo que o Programa Saúde na Hora seria o item que ganharia o maior aumento em volume (195%).

O CONASS e o CONASEMS manifestaram apoio à medida logo que foi formalizada através da Portaria n° 2.979/19. De fato, Wilames Freire, o presidente do CONASEMS, defendeu a proposta como resultado de debate “entre gestores, técnicos, academia e outros setores da sociedade”[iv], apesar da proposta não ter passado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). O Secretário do CONASEMS, Mauro Junqueira, afirmou que não haveria perdas em recursos para os municípios porque “com as novas regras, todos vão se adaptar. E, além disso, há um tempo para que os problemas sejam resolvidos”[v].

Por outro lado, o CONASS apontou que a inspiração para tais mudanças veio da experiências de outros países, como o Reino Unido e o Canadá e, ao comunicar a formalização da medida, os editores do site do CONASS abriram a matéria declarando que o “Governo investirá R$ 2 bilhões para incluir 50 milhões de brasileiros no SUS”[vi]. A publicação foi concluída com uma folha de resumo dos “Seis Passos para a Atenção Primária”, descrevendo como um plano coordenado as ações recentemente tomadas pelo MS para a reestruturação da APS: a criação da SAPS/MS, o Programa Saúde na Hora, o Programa Médicos pelo Brasil, a reestruturação do financiamento da APS, o Conecte SUS e a Capacitação de Agentes Comunitários de Saúde e de Endemias.

Finalmente, em nota oficial[vii] publicada em novembro, a SBMFC analisou a medida apontando como críticas a falta “de mecanismos claros para identificação e apoio a municípios que venham a apresentar redução de repasse federal” e a ambiguidade da Portaria n°2.979 sobre a questão da residência médica. Porém, a Sociedade se declara partícipe do processo de formação do Programa Médicos pelo Brasil, e em pleno apoio à nova política, argumentando que “o caráter universal do SUS se dá, primeiramente, pelo art 196° da Constituição Federal, não sendo, portanto, violado pelo modelo utilizado para se calcular o montante repassado pela união aos Municípios”vii. Em janeiro, a SBMFC foi representada pelo seu Diretor de Pesquisa, Daniel Soranz, durante o programa Sala de Convidados do Canal Saúde da Fiocruz[viii]. Soranz defendeu que o novo modelo incentiva os gestores municipais a expandir o cadastro de suas populações, o que permite que as eSF conheçam e possam dar seguimento aos seus usuários. Ciente das atuais dificuldades de implantação do sistema de informação necessário para o cadastro, argumentou que o MS prometeu resolvê-las no “próximo período”. Adicionou que, num contexto de APS fortemente desfinanciada, o novo modelo traria um aumento de 2 bilhões de reais no seu orçamento, e procura estimular todos os entes federados a tomar novas medidas para aportar mais recursos para a APS.

Posicionamentos contra o novo modelo de financiamento da APS

Várias notas e boletins foram publicados por instituições, grupos de pesquisa e outras associações criticando a proposta de novo financiamento e posicionando-se contra as recentes iniciativas do MS. Entre os principais críticos da mudança encontram-se o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Rio de Janeiro (COSEMS-RJ), 24 entidades do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), além de vários pesquisadores.  Sumarizamos abaixo alguns argumentos apresentados.

O CNS, em nota publicada no dia 13 de novembro 2019[ix], posicionou-se claramente contra a publicação da Portaria n° 2.979/2019, denunciando, em particular, a invalidação das atribuições constitucionais do controle social, segundo a Lei n° 8.142/1990. O Conselho foi representado durante o programa Sala de Convidados do Canal Saúde da Fiocruzviii por um membro de sua mesa diretora, Elaine Pelaez. Esta demonstrou preocupação com a dificuldade de cadastro de grupos vulneráveis, como pessoas que não têm residência fixa (a exemplo dos moradores de rua) e defendeu uma modalidade de financiamento que contemplasse a população inteira. Sobre o conteúdo da medida, apontou a incerteza de que essa nova medida de financiamento possa efetivamente expandir a abrangência dos serviços de APS e o fortalecimento da ESF.

Em nota conjunta[x], 24 entidades do MRSB posicionaram-se contra a proposta de financiamento e a favor dos Projetos de Decreto Legislativo do deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) e do senador Humberto Costa (PT-PE), que pretendem sustar a Portaria nº 2.979/19 do Ministério da Saúde. Ressaltaram a falta de transparência da elaboração da medida e a falta de evidência de que o novo modelo asseguraria a redução das desigualdades regionais. Denunciaram, também, a clara associação desta medida com as políticas de austeridade fiscal implantadas a partir de 2016.

Ainda durante o programa Sala de Convidados do Canal Saúde da Fiocruzviii, o COSEMS-RJ foi representado pelo assessor técnico Manoel Santos, que relatou os esforços do Conselho para verificar os impactos potencias do novo modelo de financiamento, com graves prejuízos, na ordem de mais de 400 milhões de reais, afetando 98,3% da população do estado. De fato, o COSEMS-RJ estimou que, em alguns municípios do estado, haveria perdas de até 6 milhões de reais por mês durante um quadrimestre.  Argumenta que existem dificuldades concretas na implantação do cadastro, como pessoas que se recusam ser cadastradas, ou até áreas inteiras que resistem ao cadastro, e que o incentivo do novo modelo não é suficiente para superá-las.

A pesquisadora Ligia Giovanella, representando a Rede APS durante o mesmo programaviii, ressaltou que o sistema de informação utilizado até 2013 permitia a um indivíduo prover informações de cadastro sobre os membros da sua família, tendo um total de 140 milhões de indivíduos cadastrados. Entretanto, o sistema subsequente (e-SUS) somente cadastrou 83 milhões de pessoas, por exigir o registro individualizado, representando um aumento significativo na carga de trabalho dos Agentes Comunitário de Saúde (ACS), responsáveis pelo cadastro. Além disso, apontou para a diferença entre ter cartão SUS e ser cadastrado por uma eSF, sendo que em áreas sem eSF os cidadãos não conseguiriam se cadastrar apesar de possuírem cartão SUS. Finalmente, deu o exemplo dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo que, para conseguirem um recurso equivalente ao atual, deveriam cadastrar mais 2 milhões de pessoas e implantar mais 500 eSF em um quadrimestre.

Giovanella também falou da importância que o PAB fixo teve na expansão significativa de provisão de serviços da APS e para o aumento no número de pessoas que utilizavam a APS como provedor de serviços de saúde regular. Denunciou que com o novo modelo de financiamento o PAB fixo será abolido completamente, além de vários componentes do PAB variável, como o incentivo para os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e o incentivo do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Lamentou a evidente perda de priorização da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que tem se demostrado a estratégia de maior impacto para melhorar a saúde da população através de vários estudos científicos.  

Em relação aos 2 bilhões de reais adicionais anunciados pela SAPS/MS, Giovanella relatou os resultados de um estudo do IPEA que mostrou que os gastos federais em 2019 para a APS foram menores do que em 2018, e os gastos para 2020, conforme a proposta orçamentária em termos reais, não superam os de 2018.

Duas psicólogas associadas ao núcleo do Distrito Federal (DF) do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) analisaram em profundidade os efeitos do novo modelo de financiamento  sobre o NASF através de nota de posicionamento[xi] publicada no site do Cebes. Descreveram a história documental do NASF: em 2008 foi publicada a portaria da sua criação, preenchendo uma lacuna da época na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). O objetivo do NASF foi “de ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade”[xii], promovendo o apoio matricial através de uma “parceria com os profissionais das equipes Saúde da Família”xii, e priorizando atividades compartilhadas e interdisciplinaresxi. Seguindo com sua história, relataram que em 2010 o MS incluiu no Caderno de Atenção Básica[xiii] Diretrizes para o NASF, e em 2011 o NASF entrou no texto da nova PNAB[xiv]. Em 2014, novamente no Caderno de Atenção Básica[xv], o MS compartilhou ferramentas para guiar os gestores na implantação do NASFxi. Entretanto, em 2017, com a mais recente PNAB[xvi], o MS tomou um posicionamento diferente e modificou o nome do programa para Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf-AB), além de retirar a dimensão de apoio. Finalmente, com o novo modelo de financiamento da APS do final de 2019 o NASF deixa de ser considerado um requisito para o repasse dos recursos federais: as transferências não dependem mais do número de eSF e equipes NASF, como antesxi. Apesar disso, de o MS segue declarando que o NASF não acabou, o que sim, acabou, foi o incentivo para os gestores locais implantarem equipes de apoio matricialxi. Agora, indicadores de desempenho centrados nos médicos e enfermeiros irão incentivar os gestores locais a concentrar os esforços sobre uma seleção restrita de serviços de APS, retirando o NASF das prioridades orçamentáriasxi. Os impactos mais direitos na população apareceram entre a força laboral que compõe atualmente as equipes NASF (em torno de 30.000 profissionais), e nos usuários que terão que voltar a procurar esta atenção especializada nos hospitais sobrecarregadosxi. Isto, num momento economicamente e socialmente complicado, que está levando muitas pessoas a necessitarem de atenção psicossocial e reabilitação. Ressaltaram que os profissionais formados nas Residências Multiprofissionais em Saúde da Família/Atenção Básica ficarão sem saída profissional especializada, e chamaram a Secretaria de Saúde do DF a se posicionar contra da abolição do NASF, mantendo e ampliando os serviços existentesxi.

Quatro pesquisadores/as e professores/as da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), em número especial da revista Saúde em Debate[xvii], apresentaram uma série de críticas sobre a nova medida, incluindo: o sistema de capitação e as metas de cadastro não compatíveis com a prestação de cuidado integral, com base comunitária, prevista pela ESF; a falta de transparência sobre a forma de cálculo das metas a serem alcançadas pelas equipes; a limitação da classificação geográfica rural-urbana definida pelo IBGE para determinar a ponderação por vulnerabilidade; e a inadequação da comparação com modelos de sistemas universais como o do Reino Unido, onde a capitação é utilizada para pagamento de profissionais de saúde, e não como mecanismo de transferências intergovernamentais.

Em matéria intitulada “Armas Apontadas para a Saúde da Família”[xviii], dois médicos de família e comunidade analisam os documentos de apresentação da medida, supostamente a favor da contínua priorização da ESF. Chamam a atenção para a incoerência do discurso, ressaltando que as chamadas ‘Equipes de Atenção Primária’ (EAP), sem técnico de enfermagem e ACS, tendem a tomar o lugar das eSF.  Do mesmo jeito, a política fala de equipes multiprofissionais, mas elimina o financiamento para o NASF, suporte multiprofissional das eSF. Os autores também destacam o papel da União para garantir universalidade de acesso ao sistema de saúde, e que o novo modelo vai promover o desfinanciamento da APS. Denunciam que um “verniz técnico” está sendo utilizado, com esta ênfase nas transferências baseadas em desempenho, para “disfarçar as possibilidades de manipulação política e fragilização dos municípios na negociação com a União”, e chamam o incentivo para o cadastro proposto no novo modelo de “afogadilho ou faca no pescoço”. Alertam que a medida provavelmente irá aumentar as desigualdades regionais, beneficiando mais os municípios que já têm maiores recursos, atacando o princípio de equidade constitucional do SUS, e que “estamos diante de um pacote nacional de Estímulo às Terceirizações e Privatizações dos serviços da Atenção Primária em Saúde”.

Dois professores da USP e da UNIFESP posicionaram-se, também, publicamente contra a medida, através de matéria publicada no site da Abrasco[xix]. A pergunta central da matéria questionou qual APS está sendo promovida pelo MS com o novo modelo de financiamento. E foi respondida logo no início: é uma APS seletiva que deve abarcar os mais ‘pobres’ por falta de recurso suficiente para que seja efetivamente universal e para todos; é uma APS assistencialista e individualista, ao contrário do preconizado pelos documentos que a defendem; é uma APS que tem ‘Lista de Pacientes’ e ‘Carteira de Serviços’, para facilitar a terceirização a privados; é uma APS administrada por uma Agência para o Desenvolvimento da APS (ADAPS), ente de direito privado; é uma APS mercantilizada.

A matéria critica a nomenclatura de ‘resultados em saúde’ para descrever indicadores, como número de consultas, que são puramente processuais e não mensuram o estado de saúde da população. Sugere que o objetivo de “incentivar avanços na capacidade instalada” seja outra iniciativa para beneficiar os municípios que já estão em melhores condições, em detrimento das regiões de difícil acesso. Os autores expressam preocupação de que os incentivos necessários para promover a formação e residência médica nas regiões de baixa densidade de médicos aumentem a disparidade salarial entre os profissionais das equipes. Também apontam que, ao contrário do que se propõe com um dos seus objetivos, o novo modelo de financiamento não atende o preconizado pela Lei 141/2012. Ressaltam: “O texto da lei se refere às necessidades de saúde da população como um todo e não apenas àquela cadastrada, em destaque para a mais vulnerável, como justifica o novo modelo”. A proposta, de fato, fica muito mais alinhada com as propostas do Banco Mundial no recente documento intitulado “Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro”[xx].

Na sequência, os autores elaboram uma crítica detalhada ao documento do MS. Apontam que as transferências federais por capitação, ao invés que de acordo ao conjunto da população, rompem com o vínculo com o território, característica crucial de uma APS forte, “prejudicando a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde”. Ressaltam, também, que, ao invés do aumento propagado pelo MS de 2 bilhões no orçamento, na verdade se prevê “que o piso federal do SUS totalizará em 2020 perdas acumuladas em R$ 29,0 bilhões (a preços de 2019)”, por causa da implantação da Emenda Constitucional n. 95 desde 2017.

Sobre o componente 2 do modelo, ‘Pagamento por desempenho’, os autores apontam para a falta de transparência sobre as técnicas de mensuração dos resultados e os parâmetros sobre o desempenhoxix. Destacaram que a inspiração para este componente veio do Resource Allocation Working Party (RAWP), aplicado há mais de 40 anos no National Health System (NHS) inglês, e trouxeram algumas fontes que salientavam as limitações para a adaptação do RAWP em contextos tão diferentes, como o do Brasilxix. Finalmente, sublinham que a inspiração do pagamento por desempenho permanece nas dinâmicas de mercado, onde a ‘priorização’ de gastos é mais valorizada do que a ‘equidade’xix.

Em relação ao componente 3, ‘Incentivos a ações específicas e estratégicas’, enfatizam a ratificação de uma lógica fragmentada de implantar a APS e evidenciam a possibilidade de uma superexploração da força de trabalho, com iniciativas como o ‘Saúde na Hora’. Finalmente, sobre o componente 4, ‘Provimento de Profissionais’, destacam que se perdeu o requisito dos médicos serem especialistas na área de “Medicina de Família e Comunidade” (MFC), e se permitiu que sejam contratados em regime CLT, sob a égide do Direito Privado[xxi]. Alertam, também, para a volta de um financiamento ligado à presença do médico na equipexix.

À luz das observações conjuntamente trazidas pelos vários atores que se posicionaram contra o novo modelo de financiamento da APS, nós, a Rede APS, concluímos que a proposta do MS apresenta ameaças concretas ao fortalecimento e priorização da ESF e todos seus princípios. Recusamos a Portaria n° 2.979, e pedimos que a revisão do modelo de financiamento passe pelo processo de controle social preconizado na Lei n° 8.142/1990. Sigamos atentos.

Por Diana Ruiz e Valentina Martufi – doutorandas que contribuem para a REDE APS

Referências

[i] MS. PORTARIA Nº 2.979, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2019: Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO Publicado em: 13/11/2019 | Edição: 220 | Seção: 1 | Página: 97. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180

[ii] MS. Apresentação do novo modelo de financiamento da APS pela SAPS/MS. Brasília, Outubro 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: http://www.cosemssp.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Novo-financiamento-APS_oficial_circula%C3%A7%C3%A3o-ERNO.pdf

[iii] MS. Portaria nº 3.222, de 10 de dezembro de 2019: Dispõe sobre os indicadores do pagamento por desempenho, no âmbito do Programa Previne Brasil.. Diário Oficial da União Publicado em: 11/12/2019 | Edição: 239 | Seção: 1 | Página: 172. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-3.222-de-10-de-dezembro-de-2019-232670481

[iv] CONASEMS. CIT: pactuado novo modelo de financiamento da Atenção Básica. Publicado em 01 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.conasems.org.br/cit-pactuado-novo-modelo-de-financiamento-da-atencao-basica/

[v] Abrasco. Mudanças na Atenção Básica repercutem na imprensa – matéria por Bruno C. Dias. Publicado em 14 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/sistemas-de-saude/embaladas-como-programa-mudancas-na-atencao-basicarepercutem-na-imprensa/43948/

[vi] CONASS. Governo investirá R$ 2 bilhões para incluir 50 milhões de brasileiros no SUS. Publicado em 13 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: www.conass.org.br/governo-investira-r-2-bilhoes-para-incluir-50-milhoes-de-brasileiros-no-sus/

[vii] SBMFC. Nota da SBMFC sobre nova política de financiamento da Atenção Primária à Saúde – Programa Previne Brasil. Publicada em 28 nov 2019. Acesso em: 13 jan 2020. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/nota-sobre-nova-politica-de-financiamento/

[viii] FIOCRUZ. Sala de Convidados: “Novo financiamento da APS”. Canal Saúde. Fiocruz. Exibido em 09 jan 2020. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.canalsaude.fiocruz.br/canal/videoAberto/financiamento-da-atencao-basica-sdc-0485

[ix] CNS. Nota: CNS desaprova publicação de portaria da Atenção Primária sem aval do controle social. Publicado em 13 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: http://www.susconecta.org.br/nota-cns-desaprova-publicacao-de-portaria-da-atencao-primariasem-aval-do-controle-social/

[x] Abrasco. Em defesa da atenção primária e do direito universal à saúde: pela revogação da Portaria nº 2979/19 do Ministério da Saúde. Publicado em 21 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/institucional/defesa-da-atencao-primaria-e-do-direito-universal-a-saude-pela-revogacao-da-portaria-no-2979-19-do-ministerio-da-saude/44034/

[xi] Reis S & Meneses S. Novo financiamento da atenção básica: possíveis impactos sobre o Nasf-AB. Cebes (Online). Publicado em 12 fev 2020. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/02/novo-financiamento-da-atencao-basica-impactos-sobre-o-nasf-ab/

[xii] Brasil. Portaria GM/MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008, art. 1. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/prt0154_24_01_2008.html

[xiii] Brasil. Cadernos de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde. 2010. Acesso em 13 fev 2020. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_do_nasf_nucleo.pdf

[xiv] Portaria GM/MS nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: Ministério da Saúde. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html

[xv] Brasil (2014). Cadernos de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família – Volume 1: ferramentas para gestão e para o trabalho cotidiano. Brasília: Ministério da Saúde. 2014. Acesso em 13 fev 2020.  Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/nucleo_apoio_saude_familia_cab39.pdf

[xvi] Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html

[xvii] Melo EA, Almeida PF, Lima LD e Giovanella L. Reflexões sobre as mudanças no modelo de financiamento federal da Atenção Básica à Saúde no Brasil. Saúde debate | Rio de Janeiro, v. 43, n. Especial 5, p. 137-144, dez 2019

[xviii] Gomes-Pedralva, BA e Rocha, VXM da. Armas apontadas para a Saúde da Família. Brasil de Fato. Belo Horizonte. Publicado em 29 nov 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2019/11/29/artigo-or-armas-apontadas-para-a-saude-da-familia

[xix] Mendes A e Carnut L. Novo modelo de financiamento para qual Atenção Primária à Saúde? Abrasco. Publicado em 23 out 2019. Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/formacao-e-educacao/novo-modelo-de-financiamento-para-qual-atencao-primaria-a-saude-artigo-de-aquilas-mendes-e-leonardo-carnut/43609/

[xx] Banco Mundial. BIRD/AID. (02 de 07 de 2019). Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro. 2019 Acesso em 13 jan 2020. Disponível em: http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-doSUS.pdf  

[xxi] Miranda, AS. “Médicos pelo Brasil”: simulacro reciclado e agenciamento empresarial, 2019.. Acesso em 13 fev 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/sistemas-de-saude/medicos_brasil__bolsonaro_alcides_miranda/42108/

Coordenadora da Rede APS, Lígia Giovanella fala na 326ª Reunião Ordinária do CNS

Nos dias 13 e 14 de fevereiro o Conselho Nacional de Saúde realiza a 326ª Reunião Ordinária.  A coordenadora da Rede APS Lígia Giovanella falará sobre o novo modelo de financiamento da Atenção Primaria à Saúde. 

Acompanhe a transmissão pelo link –http://datasus.saude.gov.br/emtemporeal

Apresentação da coordenadora Ligia – Giovanella CNS fev 2020

A 326ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS), marcada para ocorrer dias 13 e 14 de fevereiro, vai debater a situação do novo coronavírus no Brasil. Considerada por especialistas uma ameaça para a Saúde pública no mundo, conselheiros e conselheiras discutirão as medidas de enfrentamento e prevenção ao vírus no Brasil junto a representantes do Ministério da Saúde (MS). A reunião é aberta ao público e será transmitida pelo Datasus. 

No dia 13, às 10h, o cenário da política de HIV/Aids no Brasil também entra em discussão no CNS junto a ativistas da causa e o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do MS. Às 12h, entra na pauta a Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep). Às 14h, o CNS volta a discutir o atual modelo de Atenção Primária à Saúde, que passou por mudanças recentes sem aval do controle social.

Às 14h, os membros do CNS debaterão os temas relacionados à Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho (Cirhrt). Às 18h, a Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin), que monitora e fiscaliza o orçamento do MS, vai debater o tema.

No dia 14, a partir de 8h, volta ao plenário do CNS a discussão sobre os impactos do derramamento de óleo nos mares brasileiros. Às 10h, o tema do novo coronavírus entra em destaque, com foco na prevenção. Na parte da tarde, a partir de 14h, a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (6ª CNSI), marcada para ocorrer de 1 a 4 de julho, entra em debate. Em seguida, as demais comissões do CNS e os encaminhamentos do pleno encerram a reunião.

Veja a pauta Preliminar da 326ª Reunião Ordinária do CNS

Acompanhe a transmissão

Mais informações

O quê: 326ª Reunião Ordinária do CNS

Quando: dias 13 e 14 de fevereiro a partir de 8h30.

Onde: Sede do CNS. Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Anexo B. Sala 104B. Brasília (DF).

Informações: (61) 33152150

Novo financiamento da atenção básica: possíveis impactos sobre o Nasf-AB

No início do ano de 2008 o Ministério da Saúde (MS) publicou a portaria que criava o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Assim como outros profissionais da saúde, nós, da psicologia, nos alegrávamos por ver, finalmente, uma definição nacional acerca do lugar e da relevância da equipe multiprofissional na atenção básica, uma vez que havia essa lacuna na Política Nacional de Atenção Básica vigente à época.

O Nasf foi criado com o “objetivo de ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade, apoiando a inserção da estratégia de Saúde da Família na rede de serviços e o processo de territorialização e regionalização a partir da atenção básica” (Portaria GM/MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008, art. 1). A proposta era formar equipes com profissionais de diferentes áreas do conhecimento que atuassem “em parceria com os profissionais das equipes Saúde da Família – eSF, compartilhando as práticas em saúde nos territórios sob responsabilidade das eSF, atuando diretamente no apoio às equipes e na unidade na qual o NASF está cadastrado” (Portaria GM/MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008, art. 2), grifos nossos. Atuar em parceria, compartilhar práticas e saberes e apoiar são algumas das ideias-força quando se trata do Nasf. São elas que apontam para as possibilidades destas equipes, ainda que também tenham sido (e talvez ainda sejam, em alguma medida) alvo de certa confusão.

O apoio matricial, que é a metodologia de trabalho na qual se pauta a atuação do Nasf, busca se afastar do modelo hierarquizado composto por mecanismos de referência e contrarreferência, protocolos e centros de regulação, de forma a “oferecer tanto retaguarda assistencial quanto suporte técnico pedagógico às equipes de referência” (Campos e Domitti, 2007, p. 400). Dessa forma, enquanto equipe de apoio, o Nasf oferta ações que se constituem nessa retaguarda assistencial (ou clínica) e pedagógica (ou formativa) às equipes de referência (no caso, as equipes de Saúde da Família ou demais equipes vinculadas ao Nasf). A ideia é que seu processo de trabalho priorize atividades compartilhadas e interdisciplinares para que, de forma colaborativa, Nasf e equipes de Saúde da Família consigam responder mais adequadamente às complexas demandas da população, que chegam na atenção básica.

Há que se reconhecer que a proposta do Nasf partiu de uma perspectiva inovadora, que estava no contrafluxo do que acontecia na atenção básica na maior parte dos lugares: um cuidado médico-centrado, em que a multiprofissionalidade envolvia no máximo equipe de enfermagem, odontólogo e Agentes Comunitários de Saúde, e em que o acesso a outros profissionais acontecia na atenção secundária, por meio de encaminhamentos e contrarreferências muitas vezes descompromissadas e ineficientes. E como qualquer novidade (ou, por que não dizer, como qualquer ação de saúde), exige dedicação e investimento (condições de trabalho, educação permanente, monitoramento, avaliação etc) para que funcione da forma prevista.

Reduções e ambiguidades foram identificadas na atuação de muitas equipes de Nasf, como muito bem apontou Tesser (2016). A principal delas, talvez, diz respeito a uma suposta oposição entre aquelas duas dimensões do trabalho do Nasf (a assistencial e a pedagógica), como se uma excluísse a outra. Para algumas pessoas a proposta do apoio significa que o Nasf não deve fazer atendimentos e que sua atuação deve se resumir às ditas reuniões de matriciamento, que em geral acontecem como reuniões para discussões de casos complexos. Destacamos que esta é uma visão equivocada da proposta, pois a atuação do Nasf deve, como já foi colocado, considerar a co-existência dessas duas dimensões de atuação. Mas, apesar e para além dos equívocos, estávamos avançando nessa construção.

E haviam investimentos com vistas a impulsionar este avanço. Em 2010, o Ministério da Saúde publicou um Caderno de Atenção Básica com Diretrizes para o Nasf, que se constituiu como um importante referencial para o trabalho das equipes. Em 2011, foi republicada a Política Nacional de Atenção Básica, então incorporando o Nasf em seu texto. Em 2014, novo Caderno de Atenção Básica é publicado, este trazendo ferramentas mais concretas na tentativa de auxiliar os gestores e trabalhadores na operacionalização cotidiana do Nasf. Para além destas iniciativas por parte do Ministério da Saúde, haviam outras no âmbito estadual e municipal que buscavam dar contornos mais precisos para a atuação dessas equipes. Na literatura, já observávamos maior número de artigos abordando as ações e os resultados do Nasf no sentido de um cuidado mais integral no âmbito da atenção básica.

Em 2017, no entanto, começamos a observar movimentos diferentes em termos de política nacional. Em outra republicação da Política Nacional de Atenção Básica, o Nasf foi rebatizado: passou a ser Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB). A dimensão do apoio foi subtraída do nome e do texto da política, embora a descrição da sua atuação ainda o traduzisse. Também se ampliou o escopo de atuação do Nasf para além das eSF, incluindo também outras equipes de AB. Por fim, o programa Previne Brasil, lançado no final de 2019, trouxe mudanças significativas no modelo de financiamento da Atenção Primária no SUS que impactam, também, sobre o Nasf-AB.

Nesta nova forma de financiamento, o repasse dos recursos federais para os municípios deixa de ser por número de equipes SF e Nasf-AB credenciadas e implantadas e passa a ser: 1) por número de pessoas cadastradas em cada eSF ou equipes de Atenção Primária (eAP); e 2) por desempenho dessas equipes em indicadores selecionados. Em síntese, não existe mais valor fixo e regularmente repassado ao município em função da existência de eSF e Nasf-AB. As eSF ou  eAP serão mantidas enquanto equipes pois é a elas que os usuários precisam estar aderidos e cadastrados, já que parte do financiamento agora advém daí; mas as equipes Nasf-AB deixam de existir como requisito para repasse dos recursos.

Então o Nasf-AB acabou? Esta é pergunta recorrente, agora. O Ministério da Saúde e o Conasems têm dito que não. A publicação da Nota Técnica n º 3/2020-DESF/SAPS/MS, no entanto, deixa ainda mais nítido o que já havia sido anunciado na Política Nacional de Atenção Básica de 2017: não há mais nenhum tipo de estímulo por parte do MS ao modus operandi do Nasf-AB e à lógica do apoio matricial. Além disso, agora fica a cargo do gestor local definir se manterá os profissionais neste ponto de atenção. Caso sim, também cabe a ele definir em que formato os manterá (vinculados a equipes Nasf-AB, vinculados diretamente às eSF, ou não vinculados a nenhuma equipe, apenas cadastrados em uma Unidade Básica de Saúde). Quer dizer, na política nacional o Nasf-AB enquanto estratégia acabou, sim. A posição do Ministério da Saúde é, na prática, pelo fim do Nasf-AB. Nos municípios, talvez acabe, talvez não: como dito, vai depender da decisão do gestor local.

Nesta mesma nota técnica há uma tentativa de dizer que os profissionais que compõem o Nasf-AB são fundamentais para uma atenção básica, ou, como agora o Ministério da Saúde diz, primária de qualidade, para o bom desempenho da eSF nos indicadores. De certo modo, isso condiz com o objetivo inicial do Nasf: afinal, ele surgiu para ampliar a qualidade e resolutividade da SF. Nesse sentido, equipes apoiadas por Nasf-AB deveriam responder melhor aos problemas e necessidades da população e assim tenderiam a ter melhores desempenho nos indicadores. Com isso, teriam também melhor financiamento, o que supostamente justificaria para o gestor local a sua manutenção. Mas então por que estamos fazendo este debate? Porque não é assim tão simples.

A construção das políticas de saúde no SUS se deu, principalmente, por meio da indução financeira por parte do Ministério da Saúde. Assim, quando este deixa de destinar um financiamento específico para um tipo equipe, sinaliza que esta não é relevante, ainda mais quando introduz pagamento por desempenho em indicadores que não dialogam diretamente com a atuação de outros profissionais que não compõem a equipe mínima da atenção básica. Os indicadores selecionados são médico e enfermeiro centrados, guardando forte semelhança com o preconizado na Política Nacional de Atenção Básica de 2006, o que já era tido como insuficiente.

É nítido que a inexistência de financiamento específico para o Nasf-AB traz um risco iminente de desmonte, uma vez que aponta para a redução da atuação multiprofissional na atenção básica e, por consequência, para a redução do acesso da população a categorias profissionais que, antes do Nasf-AB, eram acessadas apenas por meio da atenção secundária, sempre tão sobrecarregada e que não cumpre os mesmos objetivos da atenção básica. Aponta, em última instância, para a dispensabilidade dos profissionais que o compõem (estamos falando de algo em torno de 30.000 trabalhadoras e trabalhadores). Já começam a surgir relatos de equipes desfeitas e profissionais demitidos. Afinal, são poucos os gestores municipais que vão querer arriscar ser contrários àquilo que está dito nas linhas e entrelinhas do Ministério da Saúde, sem saber se, ao final do mês, a conta vai, de fato, fechar.

É importante destacar que, no contexto socioeconômico que vivemos, de desemprego, subemprego e desregulamentação do trabalho, de aumento de agravos e sofrimentos ocasionados por violências e acidentes, a demanda por ações de atenção psicossocial e reabilitação tende a aumentar. Vale dizer que as equipes Nasf-AB tem contribuído fortemente com estas ações em grande parte do território brasileiro. Fisioterapeutas e psicólogos, seguidos por nutricionistas e assistentes sociais são as categorias mais presentes na composição atual das equipes Nasf-AB, além de outras tantas que foram agregadas para a construção de um cuidado ampliado e plural. Que respostas daremos, enquanto SUS e atenção básica, a partir de agora frente a essas questões?  

Especificamente no caso do Distrito Federal (DF) temos uma cobertura de 42% de eSF e um total de 47 equipes Nasf-AB, sendo apenas 27 delas com carga horária completa de profissionais. Ou seja, pode-se dizer que a estratégia Nasf-AB ainda está em fase de consolidação no DF e agora é que começa a mostrar seus efeitos. Precisamos continuar avançando! Defendemos que a postura da Secretaria de Saúde do DF seja por manter e ampliar os serviços atuais de modo que não haja descontinuidade e nem interrupção das ações prestadas. Tal postura é de extrema importância para que não ocorram agravamentos nas condições de saúde, dado que não há retaguarda na atenção secundária para suportar a demanda.

Entrelaçadas nesta discussão estão as Residências Multiprofissionais em Saúde da Família/Atenção Básica. Formar profissionais qualificados para o SUS é um grande desafio e, historicamente, as Residências Multiprofissionais em Saúde da Família/Atenção Básica vem cumprindo esse papel que, por consequência, contribui com a melhoria do cuidado ofertado no SUS. Sem os Nasf-AB, como ficarão as Residências Multiprofissionais em Saúde da Família/Atenção Básica que tinham nessas equipes o seu campo de atuação e formação? Qual será o sentido da formação destes profissionais? Como e onde se dará o processo de educação permanente e qualificação multiprofissional para a Saúde da Família/Atenção Básica de agora em diante?

Não se faz aqui a defesa do Nasf-AB de forma ingênua e alheia às suas contradições. Defendemos o Nasf-AB como uma escolha e uma aposta em formas mais complexas de cuidar, pautadas no diálogo, na ampliação da clínica, na interdisciplinaridade, no compartilhamento de saberes, na integralidade, na corresponsabilização e também no monitoramento e na avaliação dos efeitos de suas práticas na saúde da população. As alterações na política aqui descritas não apontam nesse caminho. E se por um lado podem existir questões que coloquem o Nasf-AB na berlinda pela carência de elementos sistematizados que nos apresentem a sua eficiência, por outro existe um bom número de experiências que nos contam sobre as suas contribuições efetivas para a atenção básica. 

Há necessidade de ampliar acesso e qualidade na atenção básica e de avançar para formas de financiamento mais pautadas nos resultados de saúde do que em estrutura e em processos de trabalho. Porém há que se mudar sem retroceder. Os questionamentos aqui apresentados precisam de respostas. O SUS, suas trabalhadoras e trabalhadores, suas usuárias e usuários precisam ser consultados com relação às mudanças e merecem que a tomada de decisões seja com vistas a melhorar o Sistema. Menos que isso não admitiremos!

Sílvia Reis é psicóloga, integrante do Cebes (núcleo Distrito Federal), conselheira do Conselho Regional de Psicologia – CRP01/DF

Sara Meneses é psicóloga, residente em saúde da família/atenção básica pela ESCS/FEPECS

Artigo publicado no site do CEBES –http://cebes.org.br/2020/02/novo-financiamento-da-atencao-basica-impactos-sobre-o-nasf-ab/?fbclid=IwAR3h3gC60x4jYLZXLgRZ0MXWw5Eu1SbjDoO0XI8lXbI67I1uiO5jUzSVOVo


Referências

Brasil (2010). Cadernos de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde.

Brasil (2014). Cadernos de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família – Volume 1: ferramentas para gestão e para o trabalho cotidiano. Brasília: Ministério da Saúde.

Campos, G. W. S., Domitti, A. C. (2007). Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão de trabalho interdisciplinar em saúde. Caderno Saúde Pública, 23(2), 399-407.

Ministério da Saúde (2020). Nota Técnica n º 3/2020-DESF/SAPS/MS – Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e Programa Previne Brasil. 

Portaria GM/MS nº 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União. Brasília, DF: Ministério da Saúde.

Portaria GM/MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF.

Portaria GM/MS nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: Ministério da Saúde

Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde

Tesser, C. D. (2017). Núcleos de Apoio à Saúde da Família, seus potenciais e entraves: uma interpretação a partir da atenção primária à saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 21(62), 565-578.

Os países das Américas estão se preparando para o coronavírus chegar

O abrasquiano Jarbas Barbosa, subdiretor da Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), conversou com a jornalista Natália Cancian, da Folha de S. Paulo, sobre o coronavírus. A epidemia, que surgiu na China, gerou pânico mundial: mais de 20 mil pessoas já foram contaminadas no país, e a doença causou 425 mortes. Barbosa, entretanto, afirma que os países estão se preparando. Leia entrevista, abaixo:

Um dos nomes à frente do órgão que representa um braço da OMS (Organização Mundial de Saúde) nas Américas, Barbosa diz que a decisão em declarar emergência internacional em saúde pública deve acelerar ações para deter a transmissão.

Para Barbosa, nenhum país está livre do vírus, mas é possível adotar medidas para conter o avanço a partir dos primeiros registros.

O que muda com a declaração de emergência em saúde pública de nível internacional pela OMS?

A declaração reforça a necessidade de manter o alerta alto e que países façam um esforço pela detecção precoce e para evitar que haja transmissão local.

Também significa que é possível ocorrer a mobilização de recursos internacionais para trabalhar junto com o governo de um país para conter o surto.

Avalio que a declaração foi acertada. Isso vai possibilitar uma ação internacional combinada com a China mais eficaz para deter a transmissão.

E o que isso muda em relação a avaliação atual sobre o coronavírus?

Não muda, porque a avaliação de risco já é muito alta. Houve um mal entendido de um documento técnico que colocou como moderada, e a equipe da OMS pediu desculpas.

Mas, internamente, sempre foi essa a avaliação de risco que estávamos lidando: a de risco alto. É um vírus novo que ainda precisamos conhecer bem. Até ter a transmissão interrompida, é preciso manter alerta.

Em um mês, já são mais de 10 mil casos confirmados, a maioria na China. O que podemos esperar?

Até agora, temos uma transmissão sustentada bem comprovada na província de Hubei, onde fica a cidade de Wuhan.

Dados do Ministério da Saúde da China indicam uma tendência à estabilização da transmissão em Hubei, mas precisamos esperar mais para confirmar.

Fora da China, há casos importados em mais de 20 países, o que é esperado. Essa área da China é densamente povoada e importante do ponto de vista econômico.

Há risco de ter uma transmissão local também em outros países?

Já há ao menos sete casos de transmissão em outros países que tiveram contato direto com outro caso, e não viajaram. Em todos eles, a contaminação se deu de um caso que tinha vindo de Wuhan.

Ainda não há uma transmissão ocorrendo na comunidade, o que chamamos de transmissão autóctone ou sustentada [quando não se pode mais relacionar casos a um grupo]. Mas isso pode ocorrer, por isso é importante detectar rápido e tomar medidas de contenção.

O coronavírus deve chegar ao Brasil?

O que devemos fazer nesses casos é sempre trabalhar com um cenário em que é possível que chegue.

O Brasil é um país imenso e tem muita relação com a China. Todos os países das Américas estão lidando com essa possibilidade.

Ninguém está minimizando o problema e achando que é impossível chegar. Não. É possível, e por isso deve estar preparado.

É possível evitar o avanço do vírus?

Em um país que recebe um caso, é possível.

Se faz a detecção precoce e toma as medidas de monitoramento de contato, como isolamento do caso, você limita muito a possibilidade de que ocorram outros casos a partir daquele caso inicial.

Na época do Sars [síndrome respiratória aguda grave, que gerou surto em 2002], o senhor era secretário de vigilância em saúde do Ministério da Saúde. Que semelhanças vê com aquele período e o de hoje?

A Sars foi muito mais dramática. Quando se percebeu, já tinha um nível de disseminação maior.

Tínhamos vários problemas da ocorrência de casos graves em profissionais de saúde, inclusive com mortes. Agora, os casos de profissionais de saúde na China se concentraram em um hospital que lidou com a doença. Há um grau de preparação para proteger o profissional de saúde.

Vejo essa diferença.

Outro ponto é que, na época da Sars, não tínhamos o regulamento sanitário internacional, que foi aprovado em 2005. A Sars foi um vetor importante para aprová-lo.

O sr. avalia que há um alarme ou pânico exagerado em relação ao coronavírus?

Há uma atenção que é compreensível com uma doença nova.

Temos recomendado aos governos que mantenham sempre um fluxo de informação para que as pessoas saibam o que está acontecendo. E recomendado que as pessoas não divulguem notícias falsas.

O Ministério da Saúde tem orientado que brasileiros evitem viagens à China. Quais as recomendações da Opas nesse cenário?

Seguimos o regulamento internacional. Cada país é soberano. No caso do Brasil, isso pode ter um papel na proteção.

Mas é importante estar alerta de que nenhuma medida tem uma proteção 100%. Mesmo com as recomendações que podem reduzir o risco, há tem um trânsito intenso de pessoas e tem que se manter o alerta pois pode surgir um caso importado.

 

Matéria original publicada pela Folha de S. Paulo 

16º Congresso Mundial de Saúde Pública

Com o tema Public Health for the Future of Humanity: Analysis, Advocacy, and Actiono 16º Congresso Mundial de Saúde Pública será realizado de 12 a 17 de outubro de 2020, no Centro de Convenções La Nuvola, em Roma, Itália.

Associadas e associados Abrasco podem inscrever-se no evento pela faixa Member delegates of WFPHA. Para aproveitar esse benefício, registre-se diretamente no site do Congresso e informe à área de Associados da Abrasco pelo e-mail: associado@abrasco.org.br  

Confira as datas principais do evento, organizado pela Federação Mundial das Associações de Saúde Pública – World Federation of Public Health Associations (WFPHA), e não perca a oportunidade de compartilhar seu trabalho no maior congresso da área.  

✔ Até 10 de fevereiro – submissão de resumos para o programa de mentoria.

✔ Até 1º de março – submissão de resumos  

✔ Até 6 de maio – Inscrições com preços reduzidos

 

Cobertura Universal em Saúde e APS

Na última década temos assistido o surgimento e disseminação da proposta de Cobertura Universal de Saúde promovida por instituições e organismos como a Fundação Rockefeller, o Banco Mundial, e a OMS e criticado por pesquisadores, ativistas atores políticos e entidades como a Associação Latino-Americana de Medicina Social (ALAMES) (2018) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e o People´s Health Movement (2018). Neste boletim apresentaremos brevemente algumas caraterísticas dessa proposta, diferenças com os Sistemas Universais em Saúde, como tem sido sua disseminação na região e contrapontos e consequências para a abordagem de APS.

O termo Cobertura Universal de Saúde é ambíguo e tem gerado diferentes interpretações. O termo começou a ser gestado no período 2004-2010 a través de relações entre a OMS, a fundação Rockefeller e o Banco Mundial reunindo as reformas pro-mercado e de redução do Estado (Giovanella, et al., 2018)

No processo de difusão dessa concepção começaram a ser evidenciadas as diferenças epistemológicas, políticas e técnicas entre a Cobertura Universal em Saúde e os Sistemas Universais de Saúde. Os documentos oficiais da OMS passaram de defender o financiamento público em saúde através de sistemas nacionais de saúde universais para propor a compra de seguros de saúde privados ou seguros subsidiados para pobres. Um resumo dessas diferenças pode ser observado no Quadro 1 (Giovanella, et al., 2018).

Nas Américas, os países que tinham iniciativas de implementação de sistemas universais criticaram a proposta. Em 2014 os Estados membros da OPAS aprovaram a Estratégia para o Acesso Universal à Saúde e Cobertura Universal de Saúde a qual é uma proposta mais ampla que incorpora o direito à saúde e a garantia de acesso aos serviços de saúde (Giovanella, et al., 2018).

No entanto, em 2015 a Cobertura Universal em Saúde foi incorporada como uma das metas para 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Em 2018 essa concepção também fez parte da Carta de Astana, abordagem muito polêmica e questionada porque a proposta de Cobertura Universal em Saúde subordina a APS à cobertura universal e restringe a Atenção Primária à saúde à provisão de pacotes de serviços básicos diferenciados conforme extrato social (Ruiz e Martufí, 2018).

Em 2019, nas Américas continuou a resistência à proposta de Cobertura Universal em Saúde. Foi publicado o Informe da Comissão de Alto Nível “Saúde Universal no século XXI: 40 anos de Alma-Ata” no qual os autores (representantes da comunidade, academia, atores políticos, ex-ministros de saúde, e líderes de sindicatos e movimentos sociais) elaboraram recomendações para a OPAS e países da região para fazer efetivo o direito à saúde. No documento foi resgatada a Estratégia para o Acesso Universal à Saúde considerando-a superior à perspectiva de cobertura universal limitada ao aseguramento.  O texto parte da premissa de que o direito à saúde é um direito fundamental e o Estado é responsável por sua garantia. Desde essa perspectiva a comissão fez uma série de propostas organizadas em três eixos: 1. Implementação de modelos de atenção baseados nas pessoas, nas comunidades nos seus territórios, com enfoque intercultural e com intervenções intersetoriais baseadas na APS para abordar os processos de determinação social da saúde; 2.  Desenvolvimento de processos políticos e institucionais que deem suporte, viabilidade e legitimidade aos processos de mudança dos sistemas de saúde e proteção social, que potenciem a democracia participativa, o empoderamento, a participação dos atores mais vulneráveis, o enfrentamento das relações de poder entre atores, a prestação de contas, dentre outros; 3. Garantir os recursos fundamentais suficientes (humanos, tecnológicos e financeiros) para que o Estado responda às necessidades de saúde (OPAS, 2019).

Também em 2019 ocorreu a Reunião de Alto Nível sobre Cobertura Universal em Saúde realizada no marco da 74º Assembleia Geral da ONU. No evento os chefes de Estado e Governo aprovaram a declaração política “Cobertura Universal de Saúde: caminhando juntos para construir um mundo mais saudável” elaborada mediante negociações intergovernamentais. (Buss e Galvão, 2019)

Nesta declaração foi reafirmado o direito de todo ser humano ao mais alto padrão de saúde física e mental. Definiu-se a cobertura universal como o acesso de todas as pessoas, sem discriminação, a um conjunto de serviços definidos nacionalmente do qual fazem parte ações de promoção, prevenção, tratamento, reabilitação, cuidados paliativos, medicamentos essenciais e vacinas, para dessa maneira superar dificuldades financeiras ao acesso a serviços de saúde, principalmente das pessoas mais vulneráveis.  Não obstante, definiu a Cobertura Universal em Saúde como imprescindível para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (OAPS, 2019; United Nations, 2019) 

No documento também destacou-se a importância da Atenção Primária à Saúde como a base para um sistema de saúde sustentável por ter uma abordagem mais inclusiva eficaz e eficiente para melhorar a saúde das pessoas (OAPS, 2019; United Nations, 2019).

Também foram incorporadas questões associadas à integração da perspectiva de gênero e o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva. Foram abordados os determinantes ambientais da saúde, as consequências adversas das mudanças climáticas para a saúde. E afirmaram-se compromissos relativos ao combate a doenças transmissíveis, melhorias da imunização e vacinação, dentre outros (OAPS, 2019; United Nations, 2019).

O documento da ONU apresentou alguns ganhos: um conceito mais abrangente de Cobertura Universal em Saúde (que o conceito inicial manejado pela OMS); o reconhecimento da necessidade de combater as iniquidades em saúde e desigualdades sociais e econômicas tanto dentro dos países quanto entre eles, o qual requer compromisso político e cooperação internacional para atuar sobre os determinantes sociais, econômicos e climáticos da saúde; e o esclarecimento de que o fortalecimento e consolidação dos sistemas universais em saúde passa pela implementação de uma APS robusta (Buss e Galvão, 2019; Mendonça, 2019).

Além disso, no caso do Brasil, levando em conta as constantes ameaças e retrocessos que afetam o SUS é muito importante que os chefes de Estado tenham aprovado essa declaração que reiterou o direito à saúde e a Atenção Primária à Saúde, os direitos sexuais e reprodutivos e os determinantes sociais e ambientais da saúde (OAPS, 2019A).

Ainda que a declaração da ONU apresente uma visão um pouco mais abrangente da Cobertura Universal em Saúde é importante continuar a discussão e a resistência à implementação de propostas restritivas de cobertura segmentada por seguros, contrárias aos sistemas universais em saúde e que difundem uma abordagem de APS neoseletiva.

Neste sentido, outro documento importante a destacar é a iniciativa da OPAS também de 2019 do “Pacto 30•30•30 APS para la Salud Universal”. Este pacto é um chamado à ação para intensificar e acelerar os esforços da Região para alcançar a saúde universal e os ODS até 2030. É um pacto que reafirma que a saúde é um direito universal. Insta os governos a aplicarem pelo menos 6% do PIB em recursos públicos para a saúde, investir pelo menos 30% desses recursos no primeiro nível de atenção e reduzir em pelos menos 30% as atuais barreiras de acesso à atenção à saúde necessária, até 2030 (OPAS, 2019A).  

Referências:

ALAMES Asociación Latinoamericana de Medicina Social. Declaración de ALAMES frente al intento de absorber la APS en la, muy cuestionada, Cobertura Universal de Salud (UHC). Saúde Debate,  Rio de Janeiro, v. 42, n. spe1, p. 431-433, Sept. 2018. Disponível em:    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042018000500431&lng=en&nrm=iso Acesso em: 30 Jan. 2020. 

Buss, Paulo e Galvão Luiz Augusto. Saúde, meio ambiente e desenvolvimento: o futuro em pauta na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Pesquisa, Política e Ação em Saúde Pública. 2019. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1043. Acesso em: 23 jan 2020

GIOVANELLA, Ligia et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 23, n. 6, p. 1763-1776, Jun 2018. Disponível em: https://scielosp.org/article/csc/2018.v23n6/1763-1776/pt/ Acesso em: 23 jan 2020

Mendonça, Maria Helena. Reflexões sobre a atual conjuntura nacional e internacional no debate da Cobertura Universal de Saúde na Assembleia Geral da ONU. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. 2019. Disponível em: http://cebes.org.br/2019/09/reflexoes-sobre-a-atual-conjuntura-nacional-e-internacional-no-debate-da-cobertura-universal-de-saude-na-assembleia-geral-da-onu-por-maria-helena-mendonca/. Acesso em: 23 jan 2020

OAPS Observatório de Análise Política em Saúde. Cobertura Universal de Saúde será discutida na 74º Assembleia Geral da ONU; confira documento que deve ser assinado por chefes de Estado. 2019. Disponível em: http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/noticias/bebe28cca03806afdec03c09dc50ca9e/1/ Acesso em: 23 jan 2020

OAPS Observatório de Análise Política em Saúde. Declaração política sobre Cobertura Universal de Saúde foi aprovada em Assembleia Geral da ONU. 2019A. Disponível em: https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/noticias/5c18ed8e98f37d06f82856b55cb8e582/4/Acesso em: 23 jan 2020

OPAS Organización Panamericana de la Salud. “Salud Universal en el Siglo XXI: 40 años de Alma-Ata”. Informe de la Comisión de Alto Nivel. Edición revisada. Washington, D.C.: OPS; 2019. Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/50960/9789275320778_spa.pdf?sequence=5&isAllowed=y Acesso em: 23 jan 2020

OPAS Organización Panamericana de la Salud. Pacto 30•30•30 Aps Para La Salud Universal. Washington, D.C.: OPS; 2019A. Disponível em: https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&alias=50481-pacto-30-30-30-aps-para-la-salud-universal&category_slug=sistemas-servicios-salud-1934&Itemid=270&lang=es Acesso em: 30 jan 2020

People´s Health Movement. Alternative Civil Society Astana Statement on Primary Health Care. 2018. Disponivel em: https://phmovement.org/alternative-civil-society-astana-declaration-on-primary-health-care/ Acesso em: 30 de janeiro de 2020

Ruiz, Diana e Martufí, Valentina. Posicionamentos internacionais sobre a Carta de Astana. Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde. 2018. Disponível em: https://redeaps.org.br/2018/11/26/posicionamentos-internacionais-sobre-a-carta-de-astana/ Acesso em: 23 jan 2020

United Nations. Political Declaratíon of the High-level Meeting on Universal Health Coverage” Universal health coverage: moving to get her to build a healthier world “. 2019. Disponivel em: http://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/documentos/noticias/uhc-hlm-coberturauniversaldesaude/ Acesso em: 23 de janeiro de 2020

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Extraído de Giovanella et al., 2018

Por Diana Ruiz e Valentina Martufi – doutorandas que contribuem para a REDE APS