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Arquivo Diário 4 de fevereiro de 2021

Processo de desenvolvimento de vacinas é destaque na revista Radis

A ciência não dá saltos. Essa frase, usada originalmente para se referir aos processos evolutivos na natureza, também é útil para explicar o longo caminho do desenvolvimento de uma vacina. Desde o início da pandemia, a descoberta de um produto eficaz e seguro para prevenir infecções pelo novo coronavírus tem sido aguardada como uma esperança capaz de deter o avanço da doença que já matou mais de 800 mil pessoas no mundo, cerca de 120 mil delas somente no Brasil, até o fim de agosto. No entanto, a torcida para que cientistas de todo o mundo encontrem, em tempo recorde, uma vacina contra a Covid-19 não pode esquecer que a ciência tem etapas a cumprir. Dos primeiros testes em laboratório até o produto chegar às mais de 36 mil salas de imunização existentes no SUS, por exemplo, é preciso tempo, investimento e esforço humano — e ainda garantir que a vacina seja ofertada como um bem público à toda a população.

Tentativas e erros são comuns nas etapas de pesquisa em laboratório e nos testes em modelos celulares e animais até chegar às três fases dos ensaios clínicos — quando a vacina finalmente é aplicada em seres humanos, para verificar segurança e eficácia. O tempo médio de desenvolvimento de um novo produto é de cerca de 10 anos. Ainda há o risco de décadas de pesquisa não resultarem em nenhum imunizante eficaz, como acontece até o momento com o HIV, ou que as vacinas descobertas possam apresentar alguns problemas de segurança em longo prazo, ainda que raros, como ocorreu com a da dengue. Depois de toda a pesquisa científica, ainda há o desafio de produzir doses em quantidade suficiente para garantir o acesso à população em larga escala.

A corrida pela vacina contra a Covid-19 envolve, atualmente, 30 projetos já em pesquisa clínica (em humanos) e outros 139 em avaliação pré-clínica (em estudos de laboratório ou com animais), de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O esforço da ciência para acelerar a descoberta de uma vacina, sem abrir mão de segurança e eficácia, colocou nove dessas candidatas já na última fase de testes em humanos (a chamada fase 3, dos ensaios clínicos), em que o produto é aplicado em milhares de pessoas. Duas dessas contam com acordos para serem produzidas no Brasil pelos dois maiores produtores de imunobiológicos do país, caso se comprovem eficazes. De um lado, está a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela empresa AstraZeneca, no Reino Unido, que será produzida pela Fiocruz. De outro, aquela que está em estudo pela empresa Sinovac, na China, que tem acordo de produção com o Instituto Butantan.

Diante do desafio de encontrar soluções em tempo recorde para o avanço da Covid-19, Radis conta como é montar o quebra-cabeça de uma vacina. Chegamos a cinco perguntas que precisam ser respondidas antes que a população seja imunizada. Mais do que sanar a dúvida de “quando” chegará a vacina, é preciso resolver outra equação: como garantir o acesso a ela como bem público?

Como é a pesquisa?

Há pouco mais de quatro anos, Rodrigo Stabeli estava envolvido na coordenação das ações da Fiocruz para o enfrentamento ao vírus zika e suas consequências — a doença havia sido declarada pela OMS, em fevereiro de 2016, como emergência de saúde pública de importância internacional. A ciência brasileira buscava então decifrar alguns enigmas, como a relação do vírus com a síndrome congênita que acomete recém-nascidos. Pesquisador da Fiocruz na área de biotecnologia, Rodrigo não poderia imaginar que, poucos anos depois, os cientistas estariam diante daquela que ele define como “a maior crise da humanidade contemporânea”: a pandemia do novo coronavírus. A busca por uma vacina é uma corrida contra o tempo, o que não significa abrir mão de requisitos que garantam a segurança de quem vai ser imunizado. “Não existe bala mágica quando a gente trabalha com medicamentos humanos. Precisamos primeiro pensar na segurança e na vida da pessoa que vai receber o produto”, explica.

Atualmente ele integra o grupo de enfrentamento à Covid-19 na mesorregião norte de São Paulo, em Ribeirão Preto, e coordena a plataforma de Medicina Translacional da Fiocruz São Paulo, em parceria com a USP. O pesquisador ressalta que cada uma das fases para o desenvolvimento de uma vacina tem um percurso que não pode ser quebrado. “Queremos chegar a um produto que cause nenhum ou o mínimo efeito adverso necessário para que se consiga ter o efeito protetivo. Não podemos mudar de fase e temos que ter muito bem documentados os ensaios clínicos, para garantir a segurança e a idoneidade do produto”, pontua. O nascimento de uma vacina é como uma escada em que cada degrau é importante para se chegar ao destino.

A primeira etapa começa em laboratório, com pesquisas exploratórias para encontrar candidatas à vacina. “É o momento em que se analisam os famosos princípios antigênicos, ou seja, procuramos quais substâncias, moléculas ou partes do ser vivo causador da moléstia poderão servir de peças para montar o quebra-cabeça do desenvolvimento de uma vacina”, conta o pesquisador. Montadas as peças, ainda vem outro degrau antes de se iniciarem os testes em seres humanos: a chamada fase pré-clínica. Nessa etapa, o produto com potencial vacinal é testado em modelos celulares (como células de rins de macaco) ou em animais, como camundongos, coelhos e macacos. São os chamados testes in vitro e in vivo, respectivamente.

Testes em humanos

Se aprovada nas etapas iniciais, começa a bateria de testes em seres humanos, que acontecem nas três fases dos chamados ensaios clínicos [veja no Infográfico nas páginas 18 e 19]. “A primeira fase busca testar apenas a segurança do produto. Será que é tóxico para seres humanos? Será que vai causar muitos efeitos adversos?”, descreve Rodrigo. Esse primeiro round envolve cerca de 20 a 100 pessoas, geralmente adultos saudáveis. Em seguida vem a segunda fase, que é o momento de verificar a imunogenicidade, ou seja, a capacidade que uma vacina tem de estimular o sistema imunológico a produzir anticorpos; geralmente o produto é aplicado em centenas de participantes. Porém, ainda falta a terceira e última etapa, quando a eficácia da vacina é testada em milhares de pessoas.

É hora de fazer o chamado teste “duplo-cego”: uma parte dos participantes recebe o novo imunizante e outra recebe um produto sem eficácia (um placebo), mas nem os pesquisadores nem os voluntários sabem o que cada um recebeu. Ao final, os dados são avaliados para responder se a vacina é realmente eficaz e segura. Só assim ela poderá receber o registro para ser aplicada na população — no Brasil, quem dá a palavra final é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Geralmente essas fases levam mais de 10 anos. Primeiro, para se ter um produto bom; e segundo (e o mais importante), para se ter segurança”, esclarece Rodrigo. Segundo ele, é importante que em todas as etapas haja monitoramento e avaliação por pares, para que seja garantido que o produto é seguro para os humanos.

Duas das nove candidatas à vacina que estão na fase 3 têm acordos para iniciar a produção no Brasil ainda em 2020, caso sejam aprovadas. A primeira delas foi formulada pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca e está em teste em vários países do mundo, incluindo cinco mil voluntários brasileiros, sob coordenação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto D’Or. Ela utiliza o adenovírus de chimpanzé modificado para transportar o gene que codifica a proteína S do vírus Sars-Cov-2 (causador da Covid-19) e, assim, neutralizar a sua ação nas células — a tecnologia é chamada de vacina por vírus não replicante. A Fiocruz será a responsável pela produção. Em 10/8, a Anvisa autorizou uma mudança no protocolo de testes para a aplicação de uma segunda dose de reforço, totalizando duas doses em vez de uma, como proposto originalmente.

Outra vacina nessa rota é a desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac, que está em testes clínicos de fase 3, sob coordenação do Instituto Butantan, em nove mil voluntários selecionados em 12 centros de pesquisa no Brasil. A preparação utiliza uma tecnologia já bastante conhecida pela ciência: o vírus é inativado por meio de substâncias químicas para que não seja capaz de infectar. O esquema vacinal abrange duas doses no intervalo de 14 dias. Também a vacina da BioNTech/Pfizer, fruto de uma parceria americana e alemã, está em testes em mil voluntários brasileiros, em Salvador e São Paulo. Ela é baseada em uma tecnologia que utiliza ácido ribonucleico (RNA). Mas não há acordo para produção no país até o momento. Outras vacinas estão em desenvolvimento no Brasil, mas ainda não chegaram aos ensaios clínicos.

Para Rodrigo, a crise provocada pelo novo coronavírus não foi apenas de saúde, mas social, e as soluções — incluindo a vacina — devem ser pensadas para toda a população. “Ela estampou a desigualdade social no Brasil e no mundo”, pontua. Segundo ele, a vacina deve ser parte de uma política pública consistente de mitigação da doença e não de “protelação de mortes”. “Não podemos aceitar políticas que façam com que o vírus se torne endêmico, como dengue, zika e chikungunya. Não podemos aceitar a convivência da sociedade brasileira com o novo coronavírus”, completa. A vacina é apenas um passo no enfrentamento à pandemia, porque o mundo precisa se adaptar aos desafios colocados pela Covid-19. “Primeiro, porque nós não sabemos qual é a capacidade de cobertura vacinal, quanto tempo ela vai se manter. Segundo, as doses são limitadas, a gente não consegue produzir doses para garantir a cobertura de toda a população”, reflete.

É segura? É eficaz?

Os efeitos da pandemia de Covid-19 têm gerado expectativas em torno de soluções rápidas capazes de garantir o retorno à normalidade — mas os cientistas insistem que não existem “fórmulas mágicas”. “Não é simples o processo de desenvolver uma vacina. É mais complicado do que desenvolver um medicamento. Com o medicamento, temos uma pessoa doente que precisa ser tratada. Já com uma vacina, estamos ministrando um produto em pessoas saudáveis, para prevenir que elas venham a adoecer”, afirma Expedito Luna, professor de epidemiologia da Faculdade de Medicina da USP. A constatação serve de alerta para que a vacina contra a Covid-19 não seja vista como a única “tábua de salvação” na pandemia.

Segundo o pesquisador, em circunstâncias normais, nunca se viu ser publicado e ter grande espaço na mídia resultados de estudos de fase 1 e 2. “Isso é uma coisa de interesse científico, no máximo de quem está envolvido com a vacinologia”, afirma. Ele considera que as circunstâncias são realmente especiais e exigem respostas rápidas, pois “as últimas pandemias que o mundo passou não tiveram tamanha gravidade”. Porém, ele ressalta que pode haver graves consequências se o processo de desenvolvimento de uma vacina seguir por “atalhos”.

Mas por que é preciso cautela? “Primeiro, a gente pode estar diante de um produto que não tenha alta eficácia”, explica. Ainda que as vacinas sejam capazes de gerar anticorpos, não significa que elas protegerão totalmente no mundo real. “A imunogenicidade não se traduz necessariamente em proteção e eficácia. Podemos citar os exemplos das duas vacinas de dengue: ambas foram altamente imunogênicas, mas nem todo mundo que havia desenvolvido anticorpos obteve imunidade protetora”, constata. Também não há respostas até o momento sobre quanto tempo durará a proteção, ou se será necessário revacinar a população depois de um período, como acontece anualmente com a gripe.

É nesse momento que entra a decisão da política de saúde se vale a pena ou não usar o produto, principalmente para evitar os casos mais graves e as mortes. “As vacinas contra a influenza têm uma efetividade — uma proteção na vida real — em torno de 40 a 50%. Dado o volume da influenza, a quantidade de casos que têm todo o ano e o potencial de causar doença grave em determinados grupos mais vulneráveis, é considerado útil e socialmente aceitável que os recursos da saúde pública sejam investidos num programa desse tipo”, afirma Expedito. Outra questão são os cuidados com a segurança. “Será que esse produto é realmente seguro? Será que não vai trazer um evento adverso ou talvez um agravamento da doença se falhar e as pessoas adoecerem?”, pontua, ao destacar que somente testes que respeitem os protocolos científicos podem chegar a essas respostas.

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