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Protocolos com base no Processo de Enfermagem na Atenção Primária à Saúde do Município do Rio de Janeiro

Recentemente foi publicado o documento intitulado “Atenção Primária à Saúde do Rio de Janeiro: Guia de Elaboração de Protocolos Baseados no Processo de Enfermagem”, elaborado pela Lucelia dos Santos Silva, tendo a revisão crítica feita pelo Carlos Leonardo Cunha (Universidade Federal do Pará), Daiana Bonfim (Centro de Estudos, Pesquisa e Prática em APS e Redes) e Isabella Koster (Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade) [1].

Esta síntese tem o propósito de apresentar a recente experiência do Rio de Janeiro que destaca a potência e relevância da instituição de Protocolos de Enfermagem na Atenção Primária à saúde (APS) baseados no Processo de Enfermagem, cujo objetivo é guiar o raciocínio clínico de enfermeiras(os) na abordagem integral a pessoas, famílias e comunidades, consolidando a relevância do cuidado proporcionado pela Enfermagem. Desta forma, torna-se possível a capilarização da ampliação do escopo de práticas, o fortalecimento do exercício profissional baseado nas diretrizes legais e éticas, a melhoria da qualidade do acesso aos serviços e o alcance dos atributos da APS.

A expansão da APS, com aumento de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF), trouxe desfechos positivos relativos à redução da mortalidade infantil e das internações por condições sensíveis à APS, além de ampliação do acesso a serviços de saúde para população vulnerável do ponto de vista da determinação social dos processos saúde-doença. Neste contexto, os desafios presentes na realização do trabalho pelas equipe de Saúde da Família (eSF) imprimem complexidades a serem enfrentadas através de diversos saberes e capacidade de articulação dos profissionais, de reflexão crítica, reconhecimento do contexto social, comunicação com a população e intersetorial, acolhimento, escuta e compreensão dos diferentes valores culturais e crenças dos usuários, pactuando soluções para os diferentes problemas, inerentes ao contexto social e de saúde [2] . Além de exigir dos profissionais, principalmente enfermeiras(os) e médicas(os), competências ampliadas para a prática clínica cotidiana de modo a responder a maior parte dos problemas de saúde das pessoas.

No Brasil, considerando as marcantes mudanças do perfil demográfico, epidemiológico e social da população e da organização dos serviços na Rede de Atenção à Saúde (RAS), enfermeiras(os) da ESF estão desenvolvendo cuidados que incorporam ações clínicas de crescente complexidade, atenção e cuidado às respostas humanas variadas, estabelecendo diagnósticos e intervenções inerentes à prática clínica da enfermagem [3].

O trabalho na ESF interliga território, indivíduo, família para tecer a produção do cuidado em saúde. É no espaço vivo do território onde as ações da enfermagem têm potencial para transformar realidades, ao oferecer uma prática clínica de alto valor técnico-científico e sensível a processos sócio-históricos arraigados na sociedade, focando o cuidado nas necessidades de saúde apresentadas. A atuação de enfermeiras(os) nas eSF vem constituindo-se como um instrumento de mudanças nas práticas de atenção à saúde, rompendo com o modelo biomédico e médico-centrado, possibilitando boas respostas a um modelo de atenção centrado na pessoa, na família e na comunidade [4].

Pela regulamentação do exercício profissional que define o escopo de atuação da enfermagem, cabe à enfermeira, privativamente, ações como a consulta de enfermagem, a prescrição de medicamentos, solicitação de exames, cuidados a pessoas com condições complexas de saúde, entre outras. Na ESF, a consulta de enfermagem precisa dar conta de um cuidado complexo, exigindo a tomada de decisão por meio de conhecimentos técnicos-científico e éticos, envolvendo o diagnóstico de enfermagem, a prescrição de medicamentos aprovados em programas de saúde pública, abordagens terapêuticas não farmacológicas, solicitações, interpretação de exames e encaminhamentos para outros pontos da RAS, se necessário.

O trabalho da enfermeira(o) de eSF é complexo, dinâmico e possui várias dimensões. A produção do cuidado é desenvolvida com base na gestão da clínica, gestão de condições de saúde, de caso e de projetos terapêuticos, mediadas pela consulta de enfermagem. Realização de procedimentos, educação popular, educação permanente, monitoramento da situação de saúde da população, gerenciamento da equipe de enfermagem e do serviço de saúde são alguns dos papéis assumidos pelas(os) enfermeiras(os) [56].

Diversos municípios e estados, assim como o próprio Conselho de Enfermagem, dispõem de iniciativas que impulsionam o desenvolvimento de protocolos específicos para a enfermagem de modo a amparar o exercício profissional das enfermeiras na eSF. Contudo, protocolos podem engessar a prática profissional, de modo a interferir na livre escolha de avaliação e conduta das(os) enfermeiras(os), com possibilidade de redução da autonomia profissional [6]. Por isso, é necessário que sejam robustos, sintéticos, de fácil acesso e que possibilitem subsídio científico para a tomada de decisão, tanto para o profissional de saúde, quanto para o gestor [7].

Analisando riscos e benefícios da instituição de documentos que visem nortear e regular a prática de enfermeiras (os) na APS, é consenso que o uso de Protocolos de enfermagem na APS tem se apresentado como uma ferramenta potente para o trabalho de enfermeiras (os), principalmente quando induz o raciocínio clínico, a boa prática clínica, o manejo de uma condição ou doença e a ampliação de escopo de práticas, com abordagem centrada na pessoa, família ou comunidade,  sendo preciso enfrentar e ressignificar a estranheza cotidiana ao falar sobre a prática clínica da enfermagem na APS como estritamente gerencial ou protocolar na APS. Transcender esse paradigma resgata à enfermagem uma frente de cuidado ampla, considerando a determinação social na produção do cuidado, para além de uma proposta biomédica, medicalizadora e destaca a identidade e relevância clínica ao trabalho das(os) enfermeiras (os) dentro da equipe multiprofissional.

Deste modo, operacionalizar a elaboração e atualização de protocolos clínicos para enfermagem, de um maneira padronizada e coordenada é um importante caminho para subsidiar práticas de produção do cuidado no contexto da APS, fundamentadas por evidências científicas, pelos atributos essenciais e derivados da APS, pela Sistematização da Assistência de Enfermagem, pelo processo de enfermagem, pelas premissas legais e éticas que regem a sustentabilidade das atividades de enfermagem, assim como incentivo à cultura de segurança do paciente.

No Rio de Janeiro, a implantação de protocolos de enfermagem iniciou em 2012, com vistas a apoiar, guiar as decisões clínicas, condutas terapêuticas e de prover ao profissional a segurança, o compromisso ético necessário para que atuassem com autonomia, proporcionando ao usuário do SUS do município atenção à saúde de qualidade. Essa iniciativa foi um marco na história para a profissão da APS do município, pois possibilitou ampliação do escopo de atuação de enfermeiras (os), além de garantir legitimidade para o exercício profissional, normatizada pelo Conselho Regional de Enfermagem [1].

 Em 2022, dez anos após esta iniciativa, o município lança o Guia de Elaboração dos Protocolos de Enfermagem na APS, com objetivo de iniciar um ciclo de atualizações e elaboração de novos conteúdos pertinentes à sua prática clínica e à segurança para o exercício profissional. O documento, para além de contextuar os motivos da instituição de protocolos, coloca em evidência as necessidades apontadas pelos profissionais de enfermagem da ESF, após uma consulta pública, que indicou e apoiou a definição dos principais temas relevantes a serem abordados [1].

Seu desenvolvimento conta com anuência e apoio do Conselho Regional de Enfermagem e de um Comitê composto por profissionais da assistência, das áreas técnicas da Secretaria Municipal de Saúde, de Instituições de Ensino Superior, de entidades representativas da categoria, da Associação Brasileira de Enfermagem de Família e Comunidade (ABEFACO), da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) e da Rede de Pesquisa de Processo de Enfermagem (RePPE).

O Guia visa fornecer o caminho para a construção teórica de conteúdos, e deste modo, demonstra os pressupostos clínicos e legais a serem contemplados na elaboração dos protocolos, tais como: a padronização de estratégias de busca e síntese de evidências, preocupação com o arcabouço legal da profissão, com base forte no processo de enfermagem, guiando o raciocínio clínico, com uso da linguagem da enfermagem, como diagnóstico, intervenção e resultados da Classificação Internacional da Prática de Enfermagem (CIPE®), fundamentado pelos atributos da APS e por Teorias de Enfermagem. Pressupõe também que se estabeleça uma relação com a cultura de segurança do paciente e do profissional [1].

O Processo de Enfermagem, organizado em cinco etapas inter-relacionadas, interdependentes e recorrentes, envolve: coleta de dados, diagnóstico, planejamento, implementação e avaliação. Todas as ações e decisões assistenciais exigem raciocínio clínico que conduz ao julgamento clínico, o diagnóstico de enfermagem, a pactuação de metas de cuidado, a escolha de intervenções adequadas e a avaliação dos resultados da produção do cuidado em saúde [8]. Ao identificar um problema, situação clínica ou condição a ser manejada, a enfermeira(o) se embasa em modelos teóricos para fundamentar o seu pensamento crítico e o raciocínio clínico, concretizando o Processo de Enfermagem.

O Guia estabelece como proposta a elaboração dos seguintes conteúdos, mediados pela síntese de evidências, condição ou situação clínica, raciocínio clínico, modelo teórico e Processo de Enfermagem:

– Atenção aos Ciclos de Vida:  demandas de cuidado na infância, inclusive saúde mental; demandas de cuidado da mulher e do homem adolescente e adultos, incluindo aspectos da saúde mental, vulnerabilidades, gênero e sexualidade, saúde da mulher e homem negros; cuidado a idosas e idosos.

– Cuidado a Condições Crônicas Não Transmissíveis: Doenças Crônicas do modo de vida, como hipertensão e Diabetes, Dislipidemia, Obesidade, Tabagismo, Abuso de Álcool e Cuidado à pessoa com lesões.

– Condições Crônicas Transmissíveis: Tuberculose, Hanseníase, Pessoas Vivendo com Hiv/Aids, Hepatites Virais e outras IST.

– Condições Agudas Transmissíveis: Arboviroses e Covid 19.

– Atenção às Urgências e Emergências mais prevalentes.

– Atenção à Demanda Espontânea: Problemas e queixas mais comuns.

– Trabalho da Enfermagem na APS: Atribuições e Competências; Liderança, Gestão de Agenda e Equipe; Acolhimento e escuta inicial, Educação popular em Saúde, Educação continuada e permanente; Procedimentos de Enfermagem; Vigilância em Saúde; Imunização.

Uma forma da Enfermagem comunicar a sua ciência é através de Sistemas de Linguagem Padronizada (SLP), que nomeiam, classificam e vinculam fenômenos que descrevem os elementos da prática profissional. A Classificação Internacional para Prática da Enfermagem – CIPE® é uma SLP e facilita a execução do Processo de Enfermagem, dando nome aos diagnósticos, metas de cuidado e intervenção. E tem sido fortemente utilizada como um instrumento pedagógico, que produz reflexões e o desenvolvimento de habilidades diagnósticas em enfermeiras(os), culminando em respostas de cuidado mais qualificadas, apoiadas em diferentes modelos teóricos, tornando possível a descrição dos cuidados de Enfermagem prestados às pessoas (indivíduos, famílias e comunidades) a nível mundial.

A CIPE® foi escolhida para ser a base da construção de diagnósticos, resultados e intervenções no desenvolvimento de protocolos no Rio de Janeiro. Em Florianópolis – SC, centro disparador de inovações da Enfermagem na APS, a CIPE® já é amplamente utilizada para guiar o raciocínio clínico de enfermeiras (os) na APS, assim como em Pernambuco, Paraná e outros estados.  

A Enfermagem transforma realidades, em cada prática de cuidado em saúde, em cada encontro clínico, seja no consultório, seja no território, com abordagem centrada na pessoa, focalizada na família e orientada para comunidade, como parte integrante de uma equipe multiprofissional, que compartilha diversos saberes e potências na estratégia de saúde da família, fortalecendo a APS, e consequentemente, contribuindo para a consolidação do SUS. Por isso, consideramos altamente relevante ampliar o olhar para iniciativas como esta, a fim de proporcionar estratégias que aumentem a potência de atuação clínica e assistencial de enfermeiras(os) na APS.

Ademais, quando um protocolo de enfermagem institui ampliação de escopo profissional, sugere, por jurisprudência, que outros municípios e estados façam o mesmo, portanto, documentos como estes têm o potencial de transformar práticas, de impulsionar mudanças de realidades locais, regionais e nacionais do trabalho do profissional da enfermagem.

Finalizando, as perspectivas é que o Guia possa estabelecer um processo contínuo e inovador das atualizações técnicas para a qualificação da RAS e principalmente responder às necessidades de cuidado da população, a partir dos elementos constitutivos dos Protocolos de Enfermagem na APS: evidências científicas, cultura de segurança do paciente e profissional, fundamentações teóricas e arcabouço legal da enfermagem. 

A presente síntese foi feita com a colaboração da Lucelia dos Santos Silva e Isabella Koster que fazem parte do Comitê Gestor da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde. O Guia pode ser acessado de forma gratuita e on-line na plataforma da Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde (SUBPAV). Também disponibilizamos o documento na nossa plataforma (link: https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/03/GuiadeElaboracaodosProtocolosdeEnfermagem_v26_WEB.pdf) ou clique aqui.

GuiadeElaboraçãodosProtocolosdeEnfermagem_v26_WEB

 

REFERÊNCIAS

  1. RIO DE JANEIRO (RJ). Secretaria Municipal de Saúde. Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde (SUBPAV). Atenção Primária à Saúde do Rio de Janeiro: Guia de Elaboração de Protocolos baseados no Processo de Enfermagem. Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde [organizador]. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde. 1ª Edição, 2021. 64p. ISBN: 978-65-86417-07-4. Disponível em: <https://redeaps.org.br/wp-content/uploads/2022/03/GuiadeElaboracaodosProtocolosdeEnfermagem_v26_WEB.pdf>. Acesso em: 21 de março de 2022.
  2. SILVA JÚNIOR, A. G.; ALVES, C. A. Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas. Modelos de atenção e saúde da família, [S. l.], p. 27–41, 2007. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/8459/modelosassistenciaisemsaúde.pdf?sequence=1>. Acesso em: 21 de março de 2022. 
  3. PEDUZZI, M. Enfermeira de Prática Avançada na Atenção Básica. Revista Baiana de Enfermagem, [S. l.], v. 31, n. 4, 20 dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/24728/15403 . Acesso em: 21 de março de 2022.
  4. FERREIRA, S. R. S.; PÉRICO, L. A. D.; DIAS, V. R. F. G. The complexity of the work of nurses in Primary Health Care. Revista Brasileira de Enfermagem, [S. l.], v. 71, n. suppl 1, p. 704–709, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018000700704&lng=en&tlng=en. Acesso em: 21 de março de 2022.
  5. BONFIM, D. et al. Identificação das intervenções de enfermagem na Atenção Primária à Saúde: parâmetro para o dimensionamento de trabalhadores. Revista da Escola de Enfermagem da USP, [S. l.], v. 46, p. 1462–1470, dez. 2012. Disponível em:http://www.scielo.br/j/reeusp/a/FdXg8v7FfJ9BJpstYMZPvyK/?lang=pt  . Acesso em: 21 março de 2022.
  6. KOSTER, I. O Exercício Profissional da Enfermagem no âmbito da Atenção Primária à Saúde no Brasil. 2019. 288 fls. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/48874/2/isabella_koster_ensp_dout_2019.pdf . Acesso em: 21 de março de 2022.
  7. PIMENTA et al. Diretrizes para a Elaboração de protocolos de Enfermagem na Atenção Primária à Saúde pelos Conselhos Regionais. Vol. 1. Brasília: COFEN; 2018. Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/sites/default/files/Protocolo-web.pdf . Acesso em: 21 de março de 2022.
  8. BARROS, A. L. Processo de enfermagem: guia para a prática. COREN-SP: Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo, 2015. Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/sites/default/files/SAE-web.pdf . Acesso em: 21 de março de 2022.
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