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O Atlas da violência na perspectiva do ACS apresenta as situações estressoras (violência urbana e COVID-19) enfrentadas pelos ACS em oito municípios nordestinos (4 capitais: Fortaleza-CE, João Pessoa-PB, Teresina-PI, Recife-PE; e quatro cidade do interior do Ceará: Sobral, Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha), de modo a revelar singularidades territoriais e sazonais que impactam diretamente seus processos de trabalho, saúde mental e qualidade de vida. A perspectiva do ACS foi acessada de forma intencional, por ser um profissional com alta capilaridade e implicação com o território vivo, já que moram e labutam no mesmo contexto da comunidade. Desta forma, estes fornecem informações relevantes para o desenvolvimento de políticas públicas que fortalecem suas práticas profissionais e contribuem para o cuidado em saúde da população em contextos complexos de desigualdades sociais.

Para a apresentação destes cenários, recorreu-se a análise espacial. A utilização de técnicas de geoprocessamento constitui-se relevante recurso tecnológico e instrumento de gestão útil para avaliação, planejamento e desenvolvimento de ações em saúde. A apresentação dos dados em mapas permite a visualização e a análise dos padrões espaciais e relações entre o fenômeno da violência presente nos territórios de atuação do ACS em distintos contextos. Desta forma, podem subsidiar informações para a implementação de políticas públicas e estratégias para lidar com a violência urbana, a melhoria da saúde do trabalhador, a qualificação do processo de trabalho dos profissionais de saúde em face da convivência com a violência no território, contribuindo para a atenção à saúde da população adscrita.

A motivação da preparação do Atlas se deu pelo alarmante aumento da violência em todo o Brasil, especialmente no Nordeste, onde as capitais registram índices de violência acima da média nacional. Em 2024, 17 das 50 cidades mais violentas do mundo estavam no Brasil, sendo 10 no Nordeste, e 8 destas capitais (“Most Violent Cities in the World 2024”, 2024). A violência tem efeitos desproporcionais, afetando com mais intensidade os mais vulneráveis.

Dentre as políticas públicas no campo da saúde para responder a este contexto, tem-se a ESF, que está presente em todos os 5.570 municípios brasileiros, somando mais de 43 mil Equipes de Saúde da Família (eSF), respondendo por cerca de 63% da população brasileira, principalmente a mais vulnerável. Em dezembro de 2023, o Nordeste apresentava cobertura na atenção primária de 86,27%, alcançando mais de 16 mil eSF. Recorda-se que os ACS integram as eSF e que estes, ao desenvolverem cuidados baseados na comunidade, desempenham um papel de interligação entre o território e os sistemas sociais e de saúde (Ramukumba, 2020).

A Atenção Primária à Saúde (APS) e a Estratégia Saúde da Família (ESF) enfrentam muitos desafios. Estudos do nosso grupo de pesquisa NósAPSBrasil (https://ceara.fiocruz.br/nosapsbrasil/), com mais de 20 pesquisadores de várias instituições de ensino, pesquisa e serviço, têm mostrado que a presença da violência nos territórios interfere na saúde mental e na organização do trabalho dos profissionais de saúde, em especial, dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), fazendo com que atividades essencialmente desenvolvidas por eles não sejam executadas plenamente, com possíveis reflexos na saúde da população (Vieira-Meyer et al., 2023c, 2023b, 2023a). Dados de nossas pesquisas realizadas em oito municípios nordestinos (Fortaleza-CE, Teresina-PI, Recife-PE, João Pessoa-PB, Crato-CE, Juazeiro do Norte-CE, Barbalha-CE e Sobral-CE), tanto nas capitais quanto nas cidades do interior, em 2021 e 2023, revelaram que a violência está presente em 78,3% das comunidades atendidas pelos ACS. Ademais, 49,7% dos ACS entrevistados se sentem ameaçados pela violência durante o trabalho, sendo que 29,8% já deixaram de acompanhar alguma família de seu território (uma de suas atividades mais importantes e emblemáticas) por conta da violência. Quase cinquenta porcento (48,7%) dos ACS percebem que a violência afeta sua saúde física e 62,4% sua saúde mental, sendo que 39,2% estão em risco de transtornos mentais comuns (avaliados pelo SRQ-20, instrumento preconizado pela Organização Mundial da Saúde).

Para além da violência urbana, que de certa forma pode ser considerada um estressor crônico do sistema de saúde, outras condições sazonais, como surto de dengue, Zika, e a pandemia COVID-19, podem afetar a atenção primária. Assim, este Atlas apresenta uma subdivisão por cada município estudado, denominado “Sazonalidades no Processo de Trabalho do ACS: Pandemia COVID-19”, que apresenta, na visão do ACS, o impacto da pandemia em seus processos de trabalho. Evidenciou-se que com a pandemia covid-19 os dados da violência e efeitos desta na capacidade de cuidar da APS ainda foram complexificados. Nossos dados demonstram que o processo de trabalho do ACS é mais limitado pela violência exatamente onde ele é mais necessário, nas regiões mais vulnerabilizadas, e que já possuem indicadores socioeconômicos e saúde mais baixos. Estes resultados são alarmantes e denotam o quanto a violência está presente na comunidade e afeta a capacidade dos serviços de saúde de cuidar da população.

É mister ressaltar que os ACS, importantes atores da Atenção Primária à Saúde brasileira, fazem parte de um sistema com inúmeras complexidades. A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2017 deixou de vincular a presença do ACS na equipe da APS para o repasse dos recursos federais, diminuindo a presença deste profissional no território. Observa-se crescente número de municípios que reduziram a quantidade de ACS em seus quadros (Freire et al., 2021). Segundo o sistema e-gestor, a redução no número de ACS entre os oito municípios estudados no presente atlas foi de 10,4% entre dezembro de 2016 e dezembro de 2020, passando de 8328 para 7461. Somam-se a isto o subfinanciamento, as desigualdades geográficas, a dificuldade de colaboração entre setores público e privado, a inadequada distribuição e qualificação de recursos humanos no SUS (Castro et al., 2019).

Assim, compreender os estressores da saúde e da atuação do ACS na comunidade de forma georreferenciada, possibilita pensar em políticas que se adequem as características dos diferentes territórios, apoiando a qualificação do SUS e diminuindo as iniquidades em saúde da população, tendo este sido um dos grandes motivadores da organização do Atlas da violência na perspectiva do ACS.

Referências:

Castro, M.C., Massuda, A., Almeida, G., Menezes-Filho, N.A., Andrade, M.V., de Souza Noronha, K.V.M., Rocha, R., Macinko, J., Hone, T., Tasca, R., Giovanella, L., Malik, A.M., Werneck, H., Fachini, L.A., Atun, R., 2019. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet Lond. Engl. 394, 345–356. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(19)31243-7

Freire, D.E.W.G., Freire, A.R., Lucena, E.H.G.D., Cavalcanti, Y.W., 2021. A PNAB 2017 e o número de agentes comunitários de saúde na atenção primária do Brasil. Rev. Saúde Pública 55, 85. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021055003005

Most Violent Cities in the World 2024 [WWW Document], n.d. URL https://worldpopulationreview.com/world-city-rankings/most-violent-cities-in-the-world (accessed 12.15.24).

Ramukumba, M.M., 2020. Exploration of Community Health Workers’ views about in their role and support in Primary Health Care in Northern Cape, South Africa. J. Community Health 45, 55–62. https://doi.org/10.1007/s10900-019-00711-z

Vieira-Meyer, A.P.G.F., Ferreira, R.G.L.A., Albuquerque, G.A., Guimarães, J.M.X., Morais, A.P.P., Meyer, C.H.C., de Lima Saintrain, M.V., Castro, M.C., Yousafzai, A.K., 2023a. Gender and Violence in the Daily Routine of Community Health Workers in Fortaleza, Brazil. J. Community Health 48, 810–818. https://doi.org/10.1007/s10900-023-01221-9

Vieira-Meyer, A.P.G.F., Forte, F.D.S., Guimarães, J.M.X., Farias, S.F., Oliveira, A.L.S. de, Dias, M.S. de A., Monteiro, C.F. de S., Guedes da Silva Júnior, F.J., Morais, A.P.P., Moreira, M.R.C., Castro, M.C., Yousafzai, A.K., 2023b. Community health workers perspective on the COVID-19 impact on primary health care in Northeastern Brazil. Cad. Saude Publica 39, e00007223. https://doi.org/10.1590/0102-311XEN007223

Vieira-Meyer, A.P.G.F., Morais, A.P.P., Santos, H.P.G.D., Yousafzai, A.K., Campelo, I.L.B., Guimarães, J.M.X., 2023c. Violence in the neighborhood and mental health of community health workers in a Brazilian metropolis. Cad. Saude Publica 38, e00022122. https://doi.org/10.1590/0102-311XEN022122

Organizadores:

Anya Pimentel Gomes Fernandes Vieira-Meyer           

André Luiz Sá de Oliveira

Alice Maria Correia Pequeno

Sidney Feitoza Farias

Autores:                  

Anya Pimentel Gomes Fernandes Vieira-Meyer

André Luiz Sá de Oliveira

Alice Maria Correia Pequeno

Sidney Feitoza Farias

Maria de Fátima Antero Sousa Machado

Maria Socorro de Araújo Dias

Regina Glaucia Lucena Aguiar Ferreira

Maristela Inês Osawa Vasconcelos

Ana Patrícia Pereira Morais

Aisha Yousafzai

Marcia Castro

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