Boletim Rede APS – 6 de junho de 2025

O Programa “Agora Tem Especialistas”, instituído por meio da Medida Provisória nº 1.301, de 30 de maio de 2025, pelo Ministério da Saúde, tem como finalidade ampliar o acesso e reduzir o tempo de espera para a atenção especializada, respondendo a um dos principais entraves históricos do Sistema Único de Saúde (SUS) [1]. Trata-se de uma agenda alinhada ao reconhecimento internacional sobre a importância da redução das filas para cuidados especializados, especialmente em sistemas universais de saúde.
Para viabilizar financeiramente o Programa, o Governo Federal autorizou que entidades do setor privado de saúde possam quitar dívidas com a União mediante a prestação de serviços especializados. Embora o enfrentamento da demanda reprimida justifique ações emergenciais, como mutirões e medidas de curto prazo, a implementação da Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde (PNAES) de 2023 ressalta a necessidade de uma estruturação sistêmica e perene, com forte base na infraestrutura pública do SUS [2]. Portanto, o Programa lançará mão de recursos expressivos do orçamento público federal, capazes de alavancar as atividades previstas.
O sucesso estrutural do Programa também dependerá da superação da fragmentação decorrente da contratação de múltiplas instituições privadas. Nesse contexto, os fundamentos legais e conceituais do SUS — pautados na universalidade, integralidade e equidade — apontam para a necessidade de fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS) como eixo organizador dos cuidados de saúde em todos os municípios e do acesso à atenção especializada.
Isso implica em investimentos substanciais na infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS), na modernização de equipamentos clínicos, na saúde digital, telessaúde e na qualificação das equipes multiprofissionais. A capacidade resolutiva da APS é diretamente proporcional à presença de profissionais especialistas em Saúde da Família — médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos e agentes comunitários — apoiados por tecnologias diagnósticas e terapêuticas avançadas. Atualmente, apenas cerca de 30% das UBS possuem profissionais com formação especializada em Saúde da Família e Comunidade, evidenciando um campo prioritário para investimento.
Com estrutura e condições adequadas, esses profissionais podem realizar, no próprio nível primário, procedimentos tradicionalmente alocados à média complexidade, como exames de ultrassonografia, eletrocardiograma, procedimentos diagnósticos em oftalmologia como retinografia e avaliação de acuidade visual, atendimentos em otorrinolaringologia e acompanhamento pneumológico. Tal reorganização do processo de cuidado aumenta capacidade resolutiva da APS, reduz encaminhamentos desnecessários, encurta as filas e qualifica o acesso à atenção especializada.
Integração e comunicação entre níveis de atenção
A efetiva integração entre a APS e a atenção especializada requer mecanismos robustos de comunicação entre as equipes, aspecto que o Programa deve explicitar em suas diretrizes operacionais. Os contratos com prestadores de serviços, públicos e privados, devem conter cláusulas obrigatórias sobre a interoperabilidade dos sistemas de informação e o intercâmbio de prontuários, exames e condutas terapêuticas. A coordenação do cuidado exige, além disso, fluxos institucionais claros e a responsabilização compartilhada pelo acompanhamento dos usuários entre os diferentes pontos da rede. O Programa Agora tem Especialistas é uma ótima oportunidade para fortalecer o diálogo e a corresponsabilização entre as equipes de APS e profissionais da atenção especializada.
A criação de uma nova lógica organizacional com a entrada dos prestadores contratados pelo Programa impõe desafios à consolidação do cuidado centrado na pessoa, não na doença, garantindo que os encaminhamentos sejam pertinentes e a continuidade do cuidado seja assegurada. Sobretudo, é essencial evitar distorções como a dupla porta de entrada nos serviços privados. Tal prática — na qual usuários do SUS acessam estruturas menos qualificadas que aquelas reservadas a pacientes de planos ou particulares — viola princípios fundamentais do SUS e deve ser formalmente vedada nos instrumentos contratuais, com previsão de sanções em caso de descumprimento.
Regulação, governança e controle social
A transparência na regulação do acesso às especialidades deve ser o princípio orientador do Programa. Isso inclui o acesso dos usuários e dos profissionais às listas de espera e aos critérios de priorização clínica, conforme grau de urgência e complexidade, garantindo a equidade no atendimento da população. A inserção regular da temática na pauta dos espaços de governança interfederativa e dos conselhos de saúde é imprescindível, assim como o fortalecimento das estruturas de auditoria do SUS, com ampliação das equipes locais para fiscalizar a execução dos contratos com prestadores públicos e privados.
A regulação do acesso, para ser ágil, justa e eficaz, requer o protagonismo das equipes da APS. Essas equipes conhecem o território, acompanham longitudinalmente os usuários e têm maior potencial para avaliar prioridades assistenciais de forma integral.
Sustentabilidade do Programa
Embora o Programa “Agora Tem Especialistas” proponha respostas emergenciais necessárias ao atual acúmulo de demandas reprimidas, sua sustentabilidade no médio e longo prazo dependerá de investimentos estruturantes na rede pública especializada 100% SUS. Isso inclui a expansão física de ambulatórios, hospitais e centros de diagnóstico públicos, bem como a formação de novas equipes multiprofissionais para atendimento presencial e remoto em todo o território nacional.
O fortalecimento da atenção especializada, com base em um modelo público, integrado e coordenado pela APS, é condição indispensável para garantir o direito universal à saúde e consolidar os princípios que norteiam o SUS desde sua criação.
A PNAES reafirmou a centralidade da APS como a porta de entrada preferencial, principal centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde. (Portaria GM/MS nº 1.604, 18/10/2023) [2]. Uma política de atenção especializada estruturante exige uma APS que assume maior responsabilidade na ordenação do acesso e coordenação do cuidado do usuário de seu território, com adensamento da capacidade clínica da APS e corresponsabilização do cuidado.
Estas são diretrizes a serem reforçadas no Programa Agora tem Especialistas.
Leia também a nota da Frente pela Vida: “Agora tem Especialistas: um debate necessário” [clique aqui].
Referências
[1] Congresso Nacional. Medida Provisória nº 1.301, de 30 de maio de 2025. Brasília: DF; 2025. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/168901
[2] Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1.604, de 20 de outubro de 2023. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2023/prt1604_20_10_2023.html