A Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis divulgou em maio deste ano um projeto piloto para implementação de Lista de Pacientes no Centro de Saúde de Santo Antônio. Trata-se de um modelo alternativo de adscrição de usuários às equipes de APS, inspirado na experiência de outros países, a exemplo da Inglaterra, e previsto na Política de Atenção Primária do município (PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS. SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE, 2016). Conforme informações da Secretaria Distrital de Saúde de Florianópolis, neste projeto piloto, a lista abrange entre 2.000 e 2.500 pacientes atendidos por médico ou enfermeiro nos últimos dois anos, prevendo-se atualizações semanais e possibilidade de novas vagas a cada mês. Ou seja, é uma lista dinâmica, com entradas e saídas mensais de usuários.
Um documento que apresenta a proposta destacou como aspectos positivos do modelo a possibilidade de que o paciente escolha a lista à qual quer pertencer, independente do território; manutenção do atendimento com a mesma equipe, apesar de mudança de endereço; maior equilíbrio na distribuição da quantidade de pessoas por equipe com equipes mais uniformes e comparáveis; mais visibilidade aos atendimentos de pacientes fora do território adstrito; melhor desempenho das equipes com menores custos e maior satisfação dos usuários; melhor planejamento de expansão da APS nas áreas sobrecarregadas, não mais seguindo projeções do IBGE. Destacou ainda como aspecto negativo a necessidade do paciente se deslocar, caso não existam mais vagas na lista da unidade do seu território de moradia, uma vez que a lista apresenta um teto em relação ao número de pacientes.
A Política de APS municipal prevê a possibilidade de um sistema híbrido, sendo opcional às equipes adotarem “lista de pacientes” ou vinculação territorial dos usuários. As ações de vigilância em saúde e os atendimentos agudos de usuários do território continuariam sendo realizadas pela equipe adstrita, independentemente da lista e segundo a capacidade da equipe.
Neste Boletim, a Rede APS abre o debate em torno deste projeto que parece polêmico, apresentando diferentes visões presentes em documentos da Secretaria de Saúde de Florianópolis, com posicionamentos defendidos por entidades e pesquisadores da área, além de argumentos analisados em artigos acadêmicos publicados acerca do assunto.
No Brasil, alguns pesquisadores já tinham se posicionado a favor das listas de pacientes. Gusso, Knupp, Trindade, Lermen Junior e Poli Neto (2015) consideram que os médicos devem ter listas de pacientes que, preferentemente, não sigam regiões geográficas, senão que sejam abertas, onde a carga de trabalho profissional seja avaliada segundo a realidade local (idade, vulnerabilidade social, dos usuários, dentre outros critérios). Os autores propõem que a remuneração global por equipe na APS seja de, pelo menos, 50% por captação a partir da lista de pacientes.
A Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade (ACMFC) referiu-se, especificamente, ao projeto de Florianópolis. Eles consideram que essa proposta contribui para a melhoria dos atributos da APS como acesso, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado. A Associação também destacou que as equipes manteriam a responsabilidade sanitária pela sua área geográfica.
Apesar de concordar com o projeto e de sugerir a implementação de uma proposta similar para a odontologia, a ACMFC propôs algumas mudanças no projeto: necessidade de se revisar o tamanho da lista segundo critérios da literatura médica, segundo os quais o tamanho ideal para Florianópolis seria de 1.840 pacientes; não “descadastramento” automático de pacientes que não tenham realizado consulta nos últimos 2 anos, sugerindo que o paciente só seja desligado após tentativa mal sucedida de contatá-lo; reavaliação da frequência de atualização da lista (mensal, trimestral ou semestral); definição de um “bônus” de pagamento para aquelas equipes que mantiverem listas de pacientes próximas aos valores ideais; ponderação da lista de pacientes conforme o perfil populacional; não realização de ajustes ao tamanho da lista de pacientes de equipes com programas de residência profissional, até que se discuta o assunto com as respectivas coordenações de programa e preceptores; e implementação e funcionamento do prontuário eletrônico do município.
Pesquisadores como Chaves e Zardo (2019) consideram que no momento atual, onde os direitos dos cidadãos brasileiros estão sob ataque e o mercado tenta se expandir aos serviços de APS, a implementação de listas de pacientes em Florianópolis é um risco desnecessário porque poderia abrir a porta para que a APS seja desvinculada do território: ou seja, o município poderia contratar uma “Clínica de Saúde da Família” privada já pronta para prestar e gerenciar serviços de atenção primária à saúde.
As preocupações com a possível privatização e terceirização dos serviços, assim como a desvinculação do território, também são compartilhadas por Nedel e Carcereri (2019). Os pesquisadores destacam que a lista de pacientes não é uma comunidade concreta, portanto, a prática de uma clínica ampliada e de ações de saúde comunitária se veriam limitadas pela desconexão com o território. Ademais, as pessoas não poderiam relacionar a atuação de uma equipe com o território, o qual limitaria também o controle social. Segundo Medina (2019) que concorda com as preocupações assinaladas, “nessa proposta, o cuidado às pessoas, restringe-se a um cuidado clínico, esvaziando-se verdadeiramente o sentido da equipe, uma vez que território e pessoa são uma dualidade fragmentada”. Destaca que a visita para acompanhamento domiciliar de pessoas, grupos e famílias torna-se inviável na prática, comprometendo a proposta de modelo territorializado de atenção primária construído em nosso país.
A proposta afetaria, portanto, a vigilância em saúde. Tanto Chaves e Zardo (2019), quanto Nascimento (2019) e Nedel e Carcereri consideram que as populações mais vulneráveis, que precisam de acompanhamento, perderiam a referência territorial com a equipe, poderiam ficar vinculadas a equipes distantes do seu local de moradia ou não serem vinculados a nenhuma equipe, o que impactaria negativamente nos indicadores de saúde. Dessa maneira, se agravaria a “lei de cuidados inversos” porque os usuários mais instruídos, com melhores articulações e, possivelmente, com menores necessidades teriam acesso às melhores equipes, enquanto aqueles que mais precisam e são menos instruídos ficariam com maiores dificuldades de acesso (CHAVES E ZARDO, 2019; NASCIMENTO, 2019). Com opinião similar, Franco (2019) argumenta que as listas acabariam por privilegiar pessoas que têm maiores facilidades para se locomover na cidade. Além disso, poderia ser afetada a abordagem familiar e comunitária, necessária para a compreensão do processo saúde-doença, preocupante num país tão desigual quanto o Brasil.
Nascimento (2019) considera que a implementação de lista de pacientes pode gerar competição entre as equipes de saúde, quebrando-se a ideia de cooperação e diálogo entre as mesmas. Essa questão é apontada em um estudo desenvolvido na Noruega, onde a lista de pacientes foi implementada desde 2001. Segundo a perspectiva dos médicos, essa proposta gerava maior envolvimento do médico com o paciente, porém, acentuava a competição entre os profissionais, pelo medo de perder o paciente (associado ao pagamento por captação). Ademais, os médicos sentiam que obedeciam mais às demandas dos pacientes do que à sua própria opinião clínica/científica (CARLSEN, NORHEIM, 2003).
Outros pesquisadores consideram que a proposta pode ter aspectos positivos como a implementação de rankings dos profissionais mais ou menos requisitados (BARBOSA, 2019) e a possibilidade de livre escolha do paciente (FRANCO, 2019). No entanto, Nedel e Carcereri (2019) destacam que a liberdade de escolha sem perder a perspectiva do território só poderia ser feita nas UBS com mais de uma equipe. Barbosa (2019) assinala que é importante a escuta aos gestores para se conhecer as reais intencionalidades do projeto
Também, chama a atenção o título da proposta (“Lista de pacientes: Reestruturando a atenção primária à saúde no Brasil: Implementação em Florianópolis”), que pode dar a ideia de que esse projeto pode ser ampliado para todo o país. Franco (2019) sugere cautela, uma vez que sua implementação na realidade brasileira pode trazer prejuízos para o cuidado integral da população, insistindo que é preciso evitar a descaraterização da ESF e suas conquistas no SUS. Nedel e Carcereri (2019) compartilham essa preocupação e destacam que a proposta pode ser um passo orientado à organização liberal do Sistema Único de Saúde, que pode se associar à “Cobertura Universal de Saúde” e nos afastar dos princípios do SUS e de Alma-Ata.
O projeto piloto de listas de pacientes em Florianópolis está em implantação e precisa de acompanhamento com importante participação dos Conselhos Locais e Municipais de Saúde, além da avaliação dos seus resultados, como bem assinalam Nedel e Carcereri (2019). Convidamos a todos e todas a ingressar no site da Rede APS, seção biblioteca, consultar os materiais utilizados para compor este boletim, fazer suas próprias reflexões e compartilhar conosco seus comentários.
Referências
ACMFC Associação Catarinense de Medicina de Família e Comunidade. Lista de pacientes
Barbosa, Allan C Q. Comentários preliminares sobre o Projeto Piloto Lista de Pacientes no Centro de Saúde do Santo Antônio em Florianópolis. 2019.
Carlsen B, Norheim OF. Introduction of the patient-list system in general practice. Changes in Norwegian physicians’ perception of their gatekeeper role. Scand J Prim Health Care. 2003 Dec;21(4):209-13. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/14695070 Acesso em: 2 junho 2019.
Chaves, Igor Tavares da Silva e Zardo, Izauria. As listas de pacientes e o risco desnecessário. Blog: Reflexões e Algo Mais: Site para textos filosóficos e reflexões sobre a saúde pública. 24 maio 2019. Disponível em: https://igoreiza.home.blog/2019/05/24/sobreaslistasdepacientes/ Acesso em: 2 junho 2019.
Franco, Cassiano. Comentários preliminares sobre o Projeto Piloto Lista de Pacientes no Centro de Saúde do Santo Antônio em Florianópolis.2019
Gusso GDF, Knupp D, Trindade TG, Lermen Junior N, Poli Neto P. Bases para um Novo Sanitarismo. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015;10(36):1-10. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(36)1056 Acesso em: 2 junho 2019.
Medina, MG. Lista de pacientes de Florianópolis – Depoimento Maria Guadalupe Medina. 2019.
Nascimento, Hugo Crasso Oliveira do. Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve. Rio de Janeiro, junho de 2019
Nedel, Fluvio B., Carcereri, Daniela L. A definição de usuários da APS por lista de pacientes. 2019
Prefeitura Municipal de Florianópolis. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria N° 22\2016 Aprova a Política Municipal de Atenção Primária à Saúde para organização dos serviços e gestão e direcionamento das ações de educação permanente no âmbito da Atenção Primária à Saúde no município de Florianópolis. Diário oficial eletrônico do município edição N” 1820 de 9 de novembro de 2016. Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/29_11_2016_16.17.33.73c009e15b1538cd39469d1b7ec80eb2.pdf Acesso em: 3 junho 2019.
Secretaria Distrital de Saúde de Florianópolis. Lista de pacientes: Reestruturando a atenção primária à saúde no Brasil. Implementação em Florianópolis s.d (mimeo)
Por Diana Ruiz e Valentina Martufí – doutorandas que contribuem para a REDE APS