Elaborado por:
Bianca Borges da Silva Leandro – EPSJV/Fiocruz [1]
Isabella Koster – EPSJV/Fiocruz
Marcia Valéria Morosini – EPSJV/Fiocruz
Introdução
O ‘Boletim Epidemiológico sobre o perfil de mortalidade de Agentes Comunitárias e Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro’ é um dos produtos da pesquisa ‘Agentes comunitárias(os) de saúde no município do Rio de Janeiro: um olhar sobre o acesso à atenção à saúde e as condições de trabalho’, desenvolvida pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) em parceria com o Sindicato de Agentes Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro (Sindacs/RJ). A motivação para o estudo surgiu da inquietação do sindicato diante do aumento observado de óbitos na categoria e das dificuldades enfrentadas por estas e estes profissionais no acesso à saúde nas próprias unidades em que atuam.
Desse modo, utilizando dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o boletim adotou uma abordagem interseccional para descrever o perfil de mortalidade das e dos Agentes Comunitárias e Comunitários de Saúde (ACSs) no município do Rio de Janeiro entre 2010 e 2024 (até o mês de outubro). Cabe destacar que o município do Rio de Janeiro contava, em julho de 2024, com 7.555 ACSs(1), sendo o segundo maior contingente do país – o primeiro é o município de São Paulo com 9.908 agentes cadastrados na base de dados do CNES, no mesmo período.
Ao se analisar esse tema, não se pode perder a perspectiva sobre as condições de trabalho das e dos ACSs, em geral atravessadas pela sobrecarga, pelo estresse, pelo sofrimento, pela violência nas áreas de atuação e pela falta de suporte (técnico, emocional e institucional), que influenciam no processo de adoecimento físico e mental, o que pode resultar, eventualmente, em mortalidade precoce(2,3,4,5,6,7). Nessa linha, embora a literatura técnico-científica existente identifique os riscos aos quais essas trabalhadoras e esses trabalhadores estão expostos, percebe-se uma carência de estudos específicos sobre o perfil de mortalidade dessa categoria profissional. Diante desse cenário, este boletim busca contribuir para a produção de conhecimento sobre saúde das e dos ACS, com foco na mortalidade precoce e no seu processo de determinação social.
Principais Achados
Evolução da Mortalidade
Foram registrados 216 óbitos de ACSs no município do Rio de Janeiro entre 2010 e outubro de 2024, representando 42% dos óbitos da categoria no estado (em todo o estado foram registradas 512 mortes). A taxa de mortalidade caiu entre 2010 e 2016, mas aumentou continuamente a partir de 2017. Em 2023, houve um crescimento de 54% em relação a 2017, com taxas de 176,5 óbitos por 100 mil em 2017 e 271,0 por 100 mil em 2023. Em grande parte da série histórica, a taxa de mortalidade das e dos ACSs no município superou as taxas do estado e da região metropolitana, evidenciando um risco de mortalidade mais elevado no âmbito municipal.
Perfil Interseccional: Sexo, Raça/Cor e Idade
De 2010 a 2019, predominou a mortalidade entre homens negros (36% dos óbitos). De 2020 a 2024, houve maior concentração entre mulheres negras (40%). Observa-se, portanto, uma transição no perfil de gênero da mortalidade, acentuando o peso da mortalidade para as mulheres, em especial as trabalhadoras negras ACSs. Ainda que mulheres negras constituam a maioria na composição da categoria, essas mortes não devem ser naturalizadas, pois refletem a sobrecarga de todo o sistema de opressões historicamente vivenciada por estas mulheres. Tanto em relação a homens, quanto mulheres, a faixa etária mais afetada foi de 45 a 59 anos.
Também se observou alta mortalidade precoce (óbitos até 59 anos) em todo o período analisado: 49% dos óbitos entre 2010 e 2014, 59% entre 2015 e 2019, e 51% entre 2020 e 2024. A título comparativo, todos os óbitos ocorridos no município do Rio de Janeiro para o mesmo período, na faixa-etária dos 20 aos 59 anos computaram, em média, 26%. Isto mostra uma diferença média de quase o dobro.
Causas de Morte
As neoplasias e doenças do aparelho circulatório foram responsáveis por 47% dos óbitos entre as e os ACSs. Houve aumento de 271% nas mortes por neoplasias e doenças respiratórias entre 2010 e 2023. Entre as neoplasias, destacam-se aquelas relativas aos órgãos digestivos; entre as doenças circulatórias, as isquêmicas do coração. Entre as doenças infecciosas e parasitárias, predominam as causadas por vírus, incluindo a covid-19. Gripe e pneumonia foram as principais causas respiratórias. Entre as causas externas, destacam-se agressões e suicídio. Observam-se óbitos por doenças que possuem linha de cuidado na Atenção Primária à Saúde (APS), como gripe, pneumonia, hipertensão, HIV e tuberculose. Estima-se que 60% dos óbitos registrados entre ACSs poderiam ter sido evitados por ações efetivas de promoção, prevenção e cuidado no âmbito do SUS.
Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP)
A análise dos Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP) revelou diferenças significativas entre os sexos: entre os homens ACSs houve redução de 32% ao longo dos quinquênios, enquanto entre as mulheres houve aumento de 151%. De 2020 a 2024, os APVP entre mulheres foram 3,3 vezes maiores que entre os homens, indicando não apenas maior mortalidade entre mulheres, mas também a ocorrência de óbitos em faixas etárias mais distantes da expectativa média de vida para esse grupo. Esse padrão reforça a hipótese de um desgaste diferencial entre os grupos, especialmente entre mulheres negras, que acumulam múltiplas exposições a condições adversas de trabalho e vida.
Figura 1. Dados e indicadores sobre o perfil de mortalidade das e dos ACSs no município do Rio de Janeiro no período de 2010 a outubro de 2024

Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Leandro et al (2025)(8)
Reflexões Estratégicas e Ações necessárias
A leitura da evolução da mortalidade entre ACSs, especialmente a partir de 2017, exige uma abordagem que vá além da análise estatística do risco. Conforme Ayres (2003)(9), o conceito de vulnerabilidade deve ser entendido como um processo relacional, que articula dimensões individuais, sociais e institucionais. Assim, o aumento das taxas de mortalidade pode ser interpretado como expressão de múltiplas camadas de desproteção — desde a precarização das condições de trabalho até a insuficiência das respostas institucionais de cuidado.
A análise revela ainda que as e os ACSs morrem mais cedo que a população geral, com 60% dos óbitos sendo evitáveis. A presença de óbitos por doenças com protocolos consolidados na APS evidencia falhas estruturais no cuidado às/aos próprias/os trabalhadoras/es da saúde, que atuam na articulação entre o sistema de saúde e a comunidade. Além disso, a mortalidade precoce, especialmente entre mulheres, aponta para a sobreposição de vulnerabilidades — gênero, raça, classe e condições de trabalho — que impactam diretamente a saúde dessas profissionais.
Com base na análise interseccional, conforme proposta por Kimberlé Crenshaw(10), podemos afirmar que a sobreposição de marcadores sociais intensifica os processos de vulnerabilização e mortalidade precoce entre ACSs. No caso do município do Rio de Janeiro, a transição do perfil de óbitos para mulheres negras expressa não apenas uma mudança demográfica, mas a intensificação de desigualdades estruturais que atravessam o cotidiano dessas trabalhadoras.
Essa leitura pode ser aprofundada à luz do pensamento de Sueli Carneiro(11), que discute como a construção histórica do “outro” como não-ser fundamenta práticas de exclusão e desvalorização da vida negra. No contexto da saúde, essa lógica se expressa na invisibilidade das trabalhadoras negras como sujeitos de cuidado, mesmo estando na linha de frente da APS. A sobreposição de opressões não apenas intensifica os riscos de adoecimento e morte, mas também dificulta o reconhecimento institucional da legitimidade de suas demandas por cuidado e proteção.
Esta pesquisa representa um marco na produção de conhecimento sobre a saúde das e dos ACSs. Embora analise a situação de um único município, seus achados trazem evidências relevantes para outras realidades do país. Ao evidenciar os óbitos de ACSs, contribui para a construção de narrativas que fortalecem a luta por condições dignas de trabalho e cuidado. A apropriação desses dados pela própria categoria é estratégica para a incidência em políticas públicas territorializadas e sensíveis às desigualdades. É urgente o reconhecimento das e dos ACSs como trabalhadoras/es e usuárias/os do sistema de saúde, com acesso integral ao cuidado e suporte institucional.
O boletim epidemiológico, como uma fotografia do perfil de mortalidade, indica o quanto é estratégico analisar processos sociais mais amplos que contribuem para as mortes desnecessárias, precoces e injustas entre as e os agentes. A abordagem individualizada não resolve a questão, possivelmente sistêmica, da falta de assistência integral e suporte adequado à saúde dessas e desses profissionais, que pode ter como um de seus desfechos a morte (em especial precoce e/ou evitável). É preciso refletir sobre a necessidade de políticas específicas que reconheçam a dupla condição desses trabalhadores e trabalhadoras como profissionais e, ao mesmo tempo, usuários e usuárias do sistema de saúde.
Para conhecer o boletim e a pesquisa, acesse:
Acesso ao boletim: https://www.trabalhonaaps.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/ArquivoBoletim/perfil-de-mortalidade-de-agentes-comunitarios-e-comunitarias-de-saude-do-municipio-do-rio-de-janeiro.pdf
Referências
1. SES/RJ. Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Dados SUS. Disponível em: https://www.saude.rj.gov.br/informacao-sus/dados-sus Acesso em 15 out 2024.
2. KRUG, Suzane Beatriz F. et al. Trabalho, sofrimento e adoecimento: a realidade de agentes comunitários de saúde no sul do Brasil. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 771- 788, set. 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00078. Disponível em: https://www.scielo. br/j/tes/a/DMrHxCdNGQnmGcjKSQ957KR/abstract/?lang=pt. Acesso em: 17 abr. 2025.
3. BARRETO, Ivana Cristina de H. C. et al. Complexidade e potencialidade do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde no Brasil contemporâneo. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 42, p. 114-129, set. 2018. Número especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S108. Disponível em: https:// www.scielo.br/j/sdeb/a/yM5QgR9y7559xWP3jMMhpDd/abstract/?lang=pt. Acesso em: 15 abr. 2025.
4. SANTOS, Luciana P. G. S. dos; FRACOLLI, Lislaine Aparecida. O agente comunitário de saúde: possibilidades e limites para a promoção da saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 76-83, mar. 2010. DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-62342010000100011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/n7bjzP7tQx7C834XmjT33Mx/. Acesso em: 17 abr. 2025.
5. FERREIRA, José Nilton dos S. et al. Community health workers: working conditions and occupational health. Revista Brasileira Medicina Trabalho, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 437-444, 2021. DOI: 10.47626/1679- 4435-2021-622. Disponível em: https://www.rbmt.org.br/details/1636/pt-BR/agente-comunitario-de-saude–condicoes-laborais-e-saude-do-trabalhador. Acesso em: 17 abr. 2025.
6. OLIVEIRA, Juliana da S.; NERY, Adriana A. Condições de trabalho e saúde de agentes comunitários de saúde. Revista de Enfermagem UFPE on line, Recife, v. 13, n. 5, p. 1.503-1.512, 2019. https://doi. org/10.5205/1981-8963-v13i5a238995p1503-1512-2019. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/ revistas/index.php/revistaenfermagem/article/view/238995. Acesso em: 17 abr. 2025.
7. ROSA, Alcindo J.; BONFANTI, Ana Letícia; CARVALHO, Cíntia de S.. O sofrimento psíquico de agentes comunitários de saúde e suas relações com o trabalho. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 3, p. e190321, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/XqrtDynkGvGWZ64Gq6XcFSh/?format=pdf. Acesso em: 18 set. 2025.
8. LEANDRO, Bianca B. da S. et al. Perfil de mortalidade de Agentes Comunitárias e Comunitários de Saúde do município do Rio de Janeiro: boletim epidemiológico, 2010 a 2024. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2025. Disponível em: https://www.trabalhonaaps.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/ArquivoBoletim/perfil-de-mortalidade-de-agentes-comunitarios-e-comunitarias-de-saude-do-municipio-do-rio-de-janeiro.pdf Acesso em 23 set. 2025.
9. AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita; FRANÇA JUNIOR, Ivan; CALAZANS, Gabriela Junqueira; SALETTI FILHO, Haraldo César. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: NASCIMENTO, Paulo Cesar; ROCHA, Ana Luiza; PINHEIRO, Roseni (org.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 121–143. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001528349. Acesso em: 18 set. 2025.
10. CRENSHAW, Kimberlé. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: BAIRROS, Luiza (org.). Dossiê da III Conferência Mundial contra o Racismo – Durban, 2001. Revista Estudos Feministas, n. 1, 2002. Disponível em: https://aiaangola.org/wp-content/uploads/2024/05/Kimberle-Crenshaw-interseccionalidade.pdf. Acesso em: 18 set. 2025.
11. CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001465832. Acesso em: 18 set. 2025.
[1] Contato: bianca.leandro@fiocruz.br