Saúde e democracia sempre se constituíram em pilares do movimento sanitário brasileiro. O ideário de criação de um sistema público e universal de saúde se entrelaça com a defesa do regime democrático para o país. No atual contexto social, político e sanitário, a ideia-força “saúde é democracia e democracia é saúde”, defendida por Sérgio Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde [1], é tanto atual quanto necessária.
Não é possível se ter saúde em sentido amplo sem a existência da democracia. Neste debate, cabe delimitar que democracia não se constitui apenas em processos de escolha política. Democracia como procedimento não resulta necessariamente em justiça social. A regra procedimental de tomada de decisões coletivas é compatível com quaisquer resultados que dela resulte, inclusive os considerados injustos socialmente [2]. Democracia plena pressupõe a garantia dos direitos civis, políticos e sociais, inclusive o direito à saúde.
Desse modo, as estratégias e iniciativas para a reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) e do fortalecimento da APS no Brasil perpassam, obrigatoriamente, pela valorização da democracia e pelo incentivo e reconhecimento da participação social.
A experiência brasileira de participação social na saúde serve de inspiração para muitos outros países. Em recente publicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a participação social nos sistemas de saúde [3], o Brasil é destacado como experiência exitosa de envolvimento da população nas questões do setor. Um dos principais propósitos da publicação é incentivar os países a criarem espaços institucionalizados de deliberação no sistema de saúde. Neste sentido, o desenho institucional dos conselhos e das conferências de saúde é destacado como formato bem-sucedido de participação em saúde.
Estabelecer a participação comunitária como princípio e institucionalizar as conferências e conselhos de saúde como integrantes da estrutura do SUS representam uma decisão política da sociedade brasileira de fazer da participação social não apenas algo momentâneo, mas colocá-la como elemento perene e necessário para o bom desenvolvimento do sistema [4]. Três importantes características podem ser destacas da experiência brasileira de participação social: a capilaridade, no sentido de expansão das instâncias participativas para todas as localidades do país; a inclusividade, com o envolvimento de múltiplos stakeholders no processo participativo, com a aglutinação dos componentes comunitário, técnico-especializado, científico e de governança; e a capacidade de influência política visto do caráter deliberativo dos conselhos.
Sobre as conferências de saúde, estas constituem-se em instâncias com o propósito de avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para a formulação da política de saúde [5]. Assim, as conferências devem servir como instrumentos para fundamentar o planejamento do SUS e devem balizar o processo de tomada de decisão em todas as esferas de governo.
Em uma conferência de saúde, está sempre em jogo a disputa ideológica do sistema. Mais do que se aprovar propostas ou moções de aplausos e repúdio, o que se discute é qual SUS queremos. Nas últimas décadas, as forças liberais têm conseguido avançar na desconstrução dos valores de solidariedade e da justiça social. No setor saúde, avançam propostas e políticas restritivas, privatizantes e de precarização das relações de trabalho, com consequente fragilização do SUS e dos cuidados prestados à população.
Conforme destacado em importantes publicações internacionais, é hora de reconstruir o SUS [6-8]. Desde 2016, vivenciam-se cortes implacáveis no financiamento da saúde e reduções substanciais no número de serviços prestados [6]. A situação tornou-se ainda mais grave no governo Bolsonaro, que, orientado por visões e práticas da extrema direita, agiu para desmantelar as bases do sistema de saúde brasileiro [7]. Neste sentido, a 17ª Conferência Nacional de Saúde (17ª CNS) constitui-se em uma grande oportunidade para reestruturação do SUS e revitalização da participação da sociedade nos esforços para promover a equidade e saúde [8].
Com o tema, “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia – Amanhã vai ser outro dia”, a 17ª CNS busca mobilizar a sociedade brasileira com vistas à superação das crises sanitária, humanitária e política de ataques à democracia, à vida e aos direitos fundamentais e ao SUS [9]. Assim, a conferência apresenta como proposições: garantir a democracia e a saúde como direitos de cidadania; assegurar o direito constitucional à seguridade social que abarca a saúde, a assistência e a previdência social e sua adequada articulação para a promoção do bem-estar social; e garantir a participação da comunidade com efetivo controle social.
Quatro eixos orientam o debate e estruturam as reflexões sobre os desafios e as perspectivas para a reestruturação do SUS:
I – O Brasil que temos. O Brasil que queremos
II – O papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas
III – Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia
IV – Amanhã será outro dia para todos, todas e todes
Dentre os aspectos abordados para fundamentar a discussão dos quatro eixos, destaca-se o compromisso que a 17ª CNS constitui-se em instrumento de luta, resistência e reconstrução do Brasil que queremos, de modo que o Estado esteja voltado para a garantia dos direitos do seu povo e promova o desenvolvimento da nação.
Especificamente sobre a APS, o documento orientador da conferência alerta para as iniciativas de fragilização no nível primário vivenciada no país nos últimos anos. Dentre as ações de desmonte a serem discutidas e revertidas, destacam-se:
● A Política Nacional de Atenção Básica (2436/2017), que segmenta o cuidado, reconfigura a Estratégia Saúde da Família e enfatiza as ações curativas, interferindo no modelo de atenção integral.
● O Programa Previne Brasil (Portaria 2979/2019), que estabelece um novo modelo de financiamento da APS.
● Resolução 95/2019 do Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), que opina e incentiva o desenvolvimento de serviços privado na APS;
● A criação da ADAPS (Decreto 10.823/2019), que viabiliza o avanço da privatização da APS consolidando relações precárias de trabalho e flexibilizando a gestão pública.
A APS que queremos é APS abrangente, resolutiva e comprometida com a saúde da população. Assim, a 17ª CNS constitui-se em oportunidade para o envolvimento de todos(a) na retomada das políticas nacionais para uma APS forte. As mudanças na condução das políticas de saúde dos últimos anos enfraqueceram o enfoque comunitário e a prioridade da Estratégia Saúde da Família [10]. Desde a Declaração de Alma Alta [11], que a participação da comunidade é requerida no processo de planejamento, organização, operação e controle dos cuidados primários. Deste modo, fortalecer a mobilização para a APS integral pressupõe também fortalecer a participação da sociedade desde as iniciativas locais até a definição e acompanhamento das políticas nacionais.
Os conselhos locais de saúde constituem-se em relevantes canais para a ampliação do envolvimento e da participação da sociedade e que podem contribuir para o fortalecimento da APS e do SUS. Assim, destaca-se a necessidade de mobilização e incentivo para a criação ou fortalecimento dos conselhos locais de saúde em todas as unidades de APS do país.
O chamado da Rede APS é para o pleno envolvimento de toda a população nas diversas etapas que integram a 17ª CNS. Além das conferências municipais e estaduais, estão em curso várias conferências livres relacionadas a especificidades diversas. Assim, pesquisadores, profissionais de saúde, estudantes, representantes comunitários e população em geral são convidados e estimulados a participar deste amplo movimento cívico de reconstrução do SUS e de sua utopia transformadora da realidade social. Cabe a nós, sociedade brasileira, sonhar, discutir, propor, cobrar e fazer acontecer o SUS que necessitamos e o futuro que queremos.
Texto elaborado por José Patrício Bispo Júnior (PPG em Saúde Coletiva IMS-UFBA) para a Rede de Pesquisa em APS como boletim e chamado para a mobilização e articulação rumo à 17ª Conferência Nacional de Saúde.
Referências
1. Pense o SUS. Saúde é Democracia. Disponível em: https://pensesus.fiocruz.br/sa%C3%BAde-%C3%A9-democracia. Acesso em: 10/04/2023
2. Bispo Júnior, JP. Participação em Saúde: avanços e entres na democratização do poder político. Salvador: EDUFBA, 2015.
3. World Health Organization (WHO). Voice, agency, empowerment: handbook on social participation for universal health coverage. Geneva: World Health Organization; 2021. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/342704. Acesso em: 8 mai 2023.
4. Bispo Júnior JP, Serapioni M. Community participation: Lessons and challenges of the 30 years of health councils in Brazil. J Glob Health 2021; 11(2):03061. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8005309/. Acesso em: 8 mai 2023.
5. Brasil. Lei 8142/90 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade no SUS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm. Acesso em: 10/04/2023.
6. Ventura D. After testing times, Brazil is back. BMJ. 2023; 380:48. Disponível em: https://www.bmj.com/content/380/bmj.p48. Acesso em: 8 mai 2023.
7. Chioro A, Gomes Temporão J, Massuda A, Costa H, Castro MC, Lima NT. From Bolsonaro to Lula: The opportunity to rebuild universal healthcare in Brazil in the government transition. Int J Health Plann Manage 2023; 1-10. Disponível em: https://ppg.saudecoletiva.sites.unifesp.br/noticias/from-bolsonaro-to-lula-the-opportunity-to-rebuild-universal-healthcare-in-brazil-in-the-government-transition. Acesso em: 8 mai 2023.
8. Massuda A, Dall’Alba R, Chioro A, Temporão JG, Castro MC. After a far-right government: challenges for Brazil’s Unified Health System. Lancet 2023; 401(10380):886-888. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(23)00352-5/fulltext. Acesso em: 8 mai 2023.
9. 17ª Conferência Nacional de Saúde – Documento Orientador. 2023. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/17cns . Acesso em: 10/04/2023.
10. Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PFD, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Ciência & Saúde Coletiva 2019; 26(supl. 1):2543-2556. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/SMZVrPZRgHrCTx57H35Ttsz/. Acesso em: 8 mai 2023.
11. Conferência Internacional Sobre Cuidados Primários de Saúde, 1978, Alma-Ata. Declaração de Alma-Ata. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_alma_ata.pdf . Acesso em: 10/04/2023.
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Boletim Rede APS 8mai23
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