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Entrevista com os professores canadenses Cynthia Whitehead, Karl Iglar e Perle Feldman

Entre os dias 3 a 7 de maio a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) com o apoio do Ministério da Saúde (MS) e da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ) realizou o evento Competency Based Curriculum Workshop que discutiu as competências esperadas para os egressos de residência em Medicina de Família e Comunidade. O evento aconteceu no Rio de Janeiro e foi conduzido pelos professores da Universidade de Toronto Dra. Cynthia Whitehead , Dr. Karl Iglar e Dra. Perle Feldman.  Conversamos com os professores sobre a importância em desenvolver um currículo para a MFC baseado na competência.

 

O desenvolvimento de um currículo para a Medicina de Família no Brasil baseado na competência: uma reflexão da Universidade de Toronto

Cynthia Whitehead – MD, CCFP, FCFP, PhD
Karl Iglar – MD, CCFP
Perle Feldman – MDCM, CCFP, FCFP, MHPE

 

1- Qual a importância para o treinamento de médicos de família e comunidade que o currículo seja fundamentado na medicina baseada na competência?

O currículo baseado na competência é um modelo que nos permite analisar como treinar alunos de residência para que se tornem médicos de padrão excelente, que sejam capazes de atender as necessidades de pacientes e das comunidades onde irão atuar. É claro que esta não é a única maneira de se alcançar uma formação médica de qualidade, uma vez que, até agora, inúmeros médicos competentes já foram formados. Porém, este tipo de modelo oferece algumas vantagens, porque inicia-se o processo imaginando o “produto final’. Que tipo de médico queremos formar? Quais as habilidades, atitudes e conhecimentos que estes médicos precisam para praticar a medicina? Ao fazermos uma análise, podemos criar, propositalmente, experiências de aprendizagem e técnicas de avaliação que permitirão que os residentes sejam expostos a situações e experiências que os levem a ser o tipo de médico que queremos formar. Ao utilizarmos este método, podemos avaliar se obtivemos êxito ou se ainda precisamos melhorar. Assim como acontece com qualquer outro modelo, existem dificuldades conhecidas no modelo de competência que devemos levar em consideração. Por definição, as competências são observáveis e mensuráveis e, por isso, corremos os risco de perder a “totalidade” da identidade profissional. O detalhamento em si não consegue capturar, e de fato não captura, a complexidade da competência como um todo1. Os educadores da área médica devem reconhecer que “ o somatório daquilo que os profissionais fazem é muito maior do que quaisquer umas das partes que podem ser descritas em termos de competência”2 . Por isso, ao submeterem os residentes a avaliações, devem manter a clareza sobre quais avaliações são menos mensuráveis e qualitativas. Mesmo assim, no modelo de educação médica baseado no tempo, ou de “imersão”, nós tivemos, várias vezes, dificuldade em definir por que um residente não está pronto para se formar, ou o que ainda seria necessário que ele fizesse para ficar pronto. É possível que um médico inicie sua atividade profissional sem ter adquirido aquilo que realmente precisa. Mas, de maneira geral, quando o método baseado na competência for implementado de maneira correta, ele permite que o processo seja mais detalhado e mensurável, trazendo benefícios ao residente e à comunidade onde ele irá trabalhar.

2- Como foi a experiência de trabalhar este tema com um grupo brasileiro? O que podemos esperar do produto final?
Chegamos ao Brasil prontos para apresentar os princípios básicos da educação baseado na competência. Ficamos muito felizes ao encontrar um grupo de educadores de alto nível e muito dedicados, que já haviam compreendido os princípios da educação médica baseada na competência e estavam prontos para implementar um currículo nacional. Foi muito gratificante ver o comprometimento do grupo com este trabalho e observar o conhecimento detalhado que tinham sobre os alunos e sobre as necessidades da população.
O desenvolvimento do currículo foi mais rápido do que esperávamos e com resultados bastante avançados. Nós revisamos e adequamos nossas aulas porque o grupo já estava pronto para criar um currículo uniforme. Além disso, os profissionais estavam prontos para superar as barreiras que acabam sempre existindo na implementação de um currículo em âmbito nacional.
Apesar do desafio de trabalhar com pessoas que vieram de todo o país e do tempo limitado que tivemos, o grupo conseguiu criar um esboço do currículo durante os cinco dias de duração do workshop. Nós acreditamos, sinceramente, que este processo terá continuação. Acreditamos que um currículo nacional padrão para a Medicina de Família garantirá que todos os médicos formados nos programas de medicina de família do país terão o mesmo nível de qualidade em sua formação. Todos saberão que, não importa onde no Brasil o médico tenha se formado, ele será um profissional confiável, que tem o conhecimento necessário e que sabe fazer o que precisa ser feito.

3- Há quantos anos o Canadá usa este tipo de currículo e como foi a construção e implementação do currículo no país?
O conceito de educação baseada na competência tornou-se proeminente na literatura médica durante os anos 90 como uma reação às demandas da população para maior transparência e melhores padrões de treinamento médico. Uma greve do setor médico em Ontário, no ano de 1986, abalou a percepção da população com relação à qualidade e à responsabilidade dos médicos. O projeto denominado Educating Future Physicians for Ontario3 ou EFPO, desencadeou um processo de consulta extensiva junto a várias partes interessadas, tais como médicos, educadores, profissionais da saúde, financiadores e, mais importante, junto ao público usuário. O processo de consulta pública incluiu grupos de pessoas marginalizadas e vulneráveis, grupos de idosos, mulheres, pacientes portadores de doenças crônicas e portadores de deficiência. Este projeto foi responsável pela criação do programa de currículos nacionais de treinamento, CanMEDS,4 desenvolvido pelo Royal College of Physician and Surgeons em 2005, e pelo CanMEDS FM5 , do College of Family Physicians of Canada, em 2009. Atualmente, o Programa CanMEDS está sendo atualizado e uma nova edição do mesmo será publicada em 2015. Os programas CanMEDSand e CanMEDS- FM estabelecem os padrões de acreditação para todos os programas de treinamento médico no Canadá. Todos os cursos de residência também estão em fase de desenvolvimento de seus currículos fundamentados no CanMEDS. Talvez o mais importante de tudo seja o fato de que os critérios de avaliação estão começando a incorporar as ideias destes programas. Apesar dos cursos de residência de maneira geral ainda estarem fundamentados no tempo de treinamento, existe um movimento para tornar o treinamento e as avaliações mais fundamentados na competência. Ou seja, nós ainda estamos trabalhando no desenvolvimento de um currículo fundamentado na competência.

4 – Como é a experiência de participar deste tipo de workshop fora do Canadá?
A nossa experiência de instrutores deste tipo de workshop fora do Canadá tem sido maravilhosa. Cada vez que participamos de um workshop, aprendemos muito. Não se trata somente do contexto específico e das necessidades de cada país, mas, de maneira geral, do trabalho magnífico que está sendo feito nos vários países para desenvolver a disciplina de Medicina de Família. Este tipo de experiência também demonstra como é importante que os programas e ferramentas curriculares não sejam simplesmente exportados ou traduzidos de um país para o outro. Para que as especificidades do currículo sejam autênticas, úteis e relevantes, as mesmas devem ser criadas por educadores que trabalham num determinado cenário nacional, em sincronia com as necessidades e sistemas de saúde locais. Foi um privilégio poder compartilhar nossas experiências e aprendizados (tanto sobre o nosso trabalho de desenvolvimento de currículo no Canadá, quanto sobre o trabalho com outros líderes da Medicina de Família em outros países) com educadores brasileiros muito criteriosos e experientes que, com bastante autoconfiança, elaboraram um currículo coeso, utilizando princípios baseados na competência. Acreditamos que este trabalho importante contribuirá para a criação de ótimos padrões nacionais em Medicina de Família no Brasil, mas irá também servir de inspiração para outros educadores nesta área que estão pensando em implementar tais mudanças.

5 – Por que a necessidade de treinamento em Atenção Primária após a graduação? O diploma de graduação em Medicina não é suficiente?
Existe uma falsa concepção de que os médicos da atenção primária são “generalistas” ou de formação incompleta. Se isso fosse verdade, e se a educação na graduação fosse suficientemente exigente, talvez não houvesse necessidade de uma residência. Porém, médicos de família não são generalistas. Eles são especialistas em atender as necessidades de pacientes na atenção primária. Ou seja, eles tratam de doenças comuns que afetam todos os sistemas do corpo e em todas as fases da vida. Na prática, os médicos de família são os agentes de intervenções epidemiológicas para a saúde pública. Eles também são especialistas nos cuidados de pacientes sob a perspectiva biológica-psicológica-social, tratando pacientes no contexto de suas famílias e comunidades. Médicos de família devem saber compreender as necessidades físicas e emocionais dos pacientes e ajudá-los a atingir seus potenciais como seres humanos completos e saudáveis. É necessário possuir habilidades específicas e aprimoradas. Somente através de uma educação exigente e específica tais médicos poderão ser treinados de maneira confiável e estarão disponíveis para atender as necessidades do Brasil e de seus habitantes. Sabemos através das pesquisas de Barbara Starfield6,7 e outros autores que um sistema de saúde que conta com uma divisão de atenção primária competente, e mais especificamente de Medicina de Família, é o que existe de mais importante para melhorar economicamente e de maneira prática a saúde no geral em um país.
Bibliografia:
1. Huddle TS, Heudebert GR. Taking apart the art: the risk of anatomizing clinical competence. Acad Med 2007;82(6):536-41.
2. Grant, J. (1999). The incapacitating effects of competency: A critique. Advances in Health Sciences Education,4, 271–277.
3. Neufeld, V. R., Maudsley, R. F., Pickering, R. J., Walters, B. C., Turnbull, J. M., Spasoff, R. S., Hollomby, D. J., & LaVigne K. J. (1993). Demand-side medical education: educating future physicians for Ontario. Canadian Medical Association Journal, 148(9), 1471–1477.
4. http://www.royalcollege.ca/portal/page/portal/rc/canmeds/framework (accessed June 11, 2014)
5. http://www.cfpc.ca/uploadedFiles/Education/CanMeds%20FM%20Eng.pdf (accessed June 11, 2014
6. Starfield B, Shi L, Macinko J. Contribution of primary care to health systems and health. Milbank Q. 2005; 83: 457-502.
7. Shi L, Macinko J, Starfield B, Wulu J, Regan J, Politzer R. The Relationship between Primary Care, Income Inequality, and Mortality in US States, 1980-1995. JABFP. 2003; 16 (5): 412- 22.

 

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