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Arquivo Diário 19 de maio de 2014

Ética médica e rastreamento: em quais evidências deveríamos nos apoiar?

Se o rastreamento fosse uma droga, ela já teria sido retirada do mercado. Assim, qual será o primeiro país a parar com as mamografias para rastreamento de câncer de mama?

Nesta edição a RBMFC discute o tema da ética médica, espinha dorsal que orienta tanto as demandas por serviços ou tecnologias em saúde, como a prática dos médicos de família e comunidade. Como estímulo a essa reflexão, a seção Debate discute a “mamografia-obrigatória preventiva” no Uruguai, enquanto que na seção Ensaios, Jamoulle e Gomez discorrem sobre o conceito de prevenção quaternária, ação que tem como objetivo oferecer alternativas eticamente aceitáveis aos usuários, de modo a prevenir o excesso de intervenções médicas.2 Portanto, apesar das consideráveis transformações tecnológicas e sociais que afetam diretamente a saúde das pessoas, a ética em medicina continua a formatar moralmente as decisões e problemas em saúde, com implicações para pacientes, médicos e instituições de saúde.

Como guia analítico prático e de fácil compreensão para os profissionais da saúde, Gillon3 discute os quatro princípios e o escopo da ética médica: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Esta última se divide em justiça distributiva, justiça com base no direito e justiça legal. Esses quatro princípios fornecem um patamar de diálogo para diferentes culturas, crenças religiosas e posicionamentos políticos, visto que estes princípios são considerados prima facie: constituem dever que se impõe em todas as ocasiões em que se atua sobre a saúde das pessoas, a menos que haja um conflito entre deveres iguais ou mais fortes que estes.4 Assim, com base nesses quatro princípios que fundamentam a ética em medicina e, consequentemente, a aplicação da prevenção quaternária, pretende-se analisar criticamente o rastreamento do câncer de mama, enquanto medida preventiva.

Os programas organizados de rastreamento têm por princípio a utilização de um instrumento inicial de seleção ou peneiramento (i.e. mamografia) para separar pessoas assintomáticas na população-alvo, que necessitarão ser classificadas ou diagnosticadas por meio de um ‘gold-standard’ que define a doença (i.e. anatomopatológico) para, então, ser oferecido à pessoa o tratamento preventivo definitivo para a condição rastreada.5 Como esse tipo de intervenção recai sobre indivíduos saudáveis, os requerimentos éticos nos casos dos programas de rastreamento são altíssimos, pois os riscos de danos não estão contrabalançados com um sofrimento real (doença já instalada), mas sim, estão ancorados em um potencial futuro de adoecimento e morte. Neste caso, o princípio da não-maleficência (não causar danos) impera sobre o da beneficência (desejo de promover o bem-estar dos pacientes), visto que pessoas assintomáticas, que se percebem como saudáveis, podem ter sua saúde abalada indefinidamente devido a intervenção da biomedicina. Os exemplos de danos mais citados na literatura são sofrimentos psicológicos (devido as incertezas dos falsos positivos, falsa segurança dos falsos negativos e das situações limítrofes, que requerem monitoramento de perto, como as Neoplasias Intra-epiteliais Cervicais – NIC I, II, III), bem como as sequelas físicas resultantes dos tratamentos, tais como impotência ou incontinência urinária, no caso do rastreamento e tratamento do câncer de próstata.

Como no rastreamento e/ou check up a intervenção é orientada com base em uma ‘miragem’ ou probabilidade, este pode resultar em ‘danos sem potenciais benefícios’,6 em que os procedimentos invasivos (para esclarecer ‘imagens’ ou resultados de exames ‘positivamente’ suspeitos na fase de seleção ou peneiramento) resultam em complicações, porém a biópsia resulta normal. Por exemplo, as colonoscopias, laparoscopias, biópsias (de fígado, rim, próstata), podem produzir complicações (perfuração de alça intestinal, complicação na anestesia, perfuração de artéria importante, sepses) podendo escalonar para readmissão hospitalar, com estresse para pacientes e familiares e/ou em um pior cenário, morte do paciente com um laudo de anatomopatológico benigno. Portanto, os programas de rastreamento, por converterem pessoas saudáveis em enfermos em uma escala populacional, são altamente iatrogênicos, podendo ser resumidos na seguinte frase: “muito serão chamados, poucos os escolhidos…”, mas muitos serão prejudicados para que pouquíssimos sejam ‘curados’.

Isso é particularmente verdadeiro no caso do rastreamento do câncer de mama, que produz canceres fisiopatologicamente insignificantes (sobrediagnóstico) expondo mulheres previamente saudáveis a danos significativos devido ao tratamento com radioterapia. Gøtzsche et al.7 alertam para os riscos de efeitos adversos importantes da irradiação, tais como insuficiência cardíaca (27%) por dano da circulação cardíaca e/ou indução de câncer de pulmão (78%). Além do mais, uma revisão sistemática recentemente publicada no British Medical Journal8 sobre os efeitos adversos dos rastreamentos de cânceres em geral, verificou que somente um terço dos ensaios clínicos controlados aleatorizados se preocupou em medir os danos da intervenção do rastreamento. Esse artigo é importante porque afeta diretamente a prática dos profissionais para estabelecer os parâmetros de segurança da intervenção junto a seus pacientes, visto que existe um viés de seleção de informação que ressalta apenas os aspectos positivos do rastreamento, deixando de controlar e/ou monitorar potenciais danos.

Do ponto de vista ético, esse contexto de incerteza fere a autonomia das pacientes, criando muita vezes um falso empoderamento, uma vez que as mulheres não detém uma visão mais completa sobre os potenciais riscos e benefícios dos programas de rastreamento do câncer de mama.9 Para realmente empoderar a mulher, de modo a fortalecer sua autonomia para decidir sobre as intervenções que afetam sua saúde, há a necessidade de que a informação seja mais transparente e que revele também os potenciais danos da intervenção. Além disso, a linguagem usada na divulgação da informação deve ser neutra, de simples entendimento, culturalmente acessível, de modo que as usuárias do sistema de saúde possam decidir melhor sobre sua saúde.3

Do ponto de vista da saúde pública, da ética da justiça distributiva, e dos limitados recursos em saúde que qualquer sistema de saúde enfrenta, os programas de rastreamento desviam recursos financeiros – que deveriam ser prioritariamente investidos no tratamento e cuidado das pessoas doentes – para as pessoas saudáveis, com o agravo de produzir novos doentes reais, fruto do dano da intervenção sobre corpos saudáveis, gerando mais custos para o sistema de saúde e para a sociedade em geral.

Felizmente, os programas de rastreamento estão cada vez mais perdendo sua força, principalmente na Europa, a exemplo do Swiss Medical Board10 que não encontrou razão para a manutenção dos programas de rastreamento do câncer de mama, em face das novas evidências científicas. Na Dinamarca a taxa de mortalidade atribuída ao câncer de mama não foi reduzida devido a implementação do rastreamento sistemático do câncer de mama com mamografias, ao longo de 17 anos de seguimento,11 entretanto, se produziu uma taxa de sobrediagnóstico de 33%.12 Resultados semelhantes também foram encontrados nos Estados Unidos após 30 anos de observação13, e no Canadá, o acumulado de 25 anos de acompanhamento dos efeitos do rastreamento do câncer de mama, além de não representar redução da mortalidade por câncer de mama, resultou em 22% de sobrediagnósticos.14 Assim, para Peter C. Gøtzsche,1 umas das maiores autoridades mundiais sobre o tema, o melhor método que dispomos para reduzir a ocorrência do câncer de mama é parar com o seu rastreamento por meio de mamografias.

Desse modo, tanto do ponto de vista ético como científico,10 os programas de rastreamento deveriam ser descontinuados ou se restringirem a grupos ou situações muito específicas, e o foco da prevenção ser redirecionado para a intervenção no sintomático-precoce, visto que o tratamento do câncer de mama melhorou consideravelmente nas últimas décadas, sendo este o provável responsável pela melhoria da qualidade de vida das mulheres afetadas.1 A Força Tarefa Canadense15 de cuidados preventivos em saúde, em sua mais recente atualização (em 2011) avaliou como fraca a recomendação para o rastreamento do câncer de mama com mamografia a cada 2 a 3 anos na faixa etária de 50 a 69 anos, pois as evidências para o rastreio foram consideradas apenas de moderada qualidade. Assim, o Ministério da Saúde16 brasileiro agiu de forma bem fundamentada ao restringir os incentivos financeiros ao rastreamento do câncer de mama à faixa etária de 50 a 69 anos.

Portanto, ‘não há nada de errado em dizer não à mamografia’,9 pois, ao se atuar sobre pessoas assintomáticas e saudáveis, o princípio da não-maleficência deve sobrepor-se ao da beneficência. O desafio posto aos médicos de família e comunidade é o de individualizar cada caso neste mar de incertezas, compartilhando com seus pacientes os potenciais danos, frequentemente omitidos, atribuídos ao rastreamento de cânceres, de modo a operacionalizar na prática a prevenção quaternária.

 

 

Referências

1. Gøtzsche PC. Time to stop mammography screening? CMAJ. 2011;183(17):1957–8.http://dx.doi.org/10.1503/cmaj.111721

2. Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública. 2009;25(9):2012–20.http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000900015

3. Gillon R. Medical ethics: four principles plus attention to scope. BMJ. 1994;309(6948):184.http://dx.doi.org/10.1136/bmj.309.6948.184

4. Limentani AE. The role of ethical principles in health care and the implications for ethical codes. J Med Ethics. 1999;25:394–8. http://dx.doi. org/10.1136/jme.25.5.394

5. Norman AH, Tesser CD. Rastreamento de doenças. In Lopes JMC, Gusso GDF, editors. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. Vol 1. p. 521-32

6. Gray JAM. New concepts in screening. B J Gen Pract. 2004;54(501):292–8. PMCID: PMC1326079

7. Gøtzsche PC, Jørgensen KJ. Screening for breast cancer with mammography. The Cochrane Database of Systematic Reviews. (2013);6:CD001877. http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD001877.pub5

8. Heleno B, Thomsen MF, Rodrigues DS, Jorgensen KJ, Brodersen J. Quantification of harms in cancer screening trials: literature review. BMJ. 2013;347:5334. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.f5334

9. Heath I. It is not wrong to say no. BMJ. 2009;338:2529. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.b2529

10. Biller-Andorno N, Jüni P. Abolishing mammography screening programs? A view from the swiss medical board. N England J Med. 2014;1–3. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMp1401875

11. Jørgensen KJ, Zahl PH, Gøtzsche PC. Breast cancer mortality in organised mammography screening in Denmark: comparative study. BMJ. 2010;340,c1241. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.c1241

12. Jørgensen KJ, Zahl PH, Gøtzsche PC. Overdiagnosis in organised mammography screening in Denmark: a comparative study. BMC Women’s Health. 2009;9:36. http://dx.doi.org/10.1186/1472-6874-9-36

13. Bleyer A, Welch HG. Effect of three decades of screening mammography on breast-cancer incidence. N England J Med. 2012;367(21):1998– 2005. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa1206809

14. Miller AB, Wall C, Baines CJ, Sun P, To T, Narod SA. Twenty-five year follow-up for breast cancer incidence and mortality of the Canadian National Breast Screening Study: randomised screening trial. BMJ. 2014;348:g366. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.g366

15. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção Básica. Nota técnica conjunta: Rastreamento do câncer de mama. Brasília: MS; 2013 [Acesso em 2014 Apr 14]. Disponível em:http://sbmfc.org.br/media/Nota_CGAPDC_CPV.pdf

16. Canadian Task Force on Preventive Health Care. Screening for Breast Cancer: summary of recommendations for clinicians and policy-makers. Canadá; c2000-2014 [acesso em 2014 Apr 14]. Disponível em: http://canadiantaskforce.ca/guidelines/2011-breast-cancer/.

 

Editorial da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

Armando Henrique Norman

Tese aponta que infraestrutura da Saúde da Família é problema em unidades básicas de Manaus

Informe Ensp

Os profissionais das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) de Manaus desenvolvem suas práticas em ambientes desfavoráveis, tanto do ponto de vista das condições de trabalho no espaço físico, como dos territórios em que atuam. A infraestrutura das unidades é um fator que dificulta a realização do processo de trabalho, portanto, é um produtor de insatisfação. Foi a conclusão a que chegou a aluna de doutorado em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Arlete Lima Simões, que defendeu sua tese intitulada Trabalho e saúde de equipes da Saúde da Família em contextos socioambientais vulneráveis no município de Manaus, na Fiocruz Amazônia, sob orientação do pesquisador Carlos Machado de Freitas.

Para ela, embora os trabalhadores reconheçam estar num contexto de importantes vulnerabilidades, as entrevistas coletadas revelaram que os contextos repercutem muito menos em suas práticas laborais do que a infraestrutura inadequada das condições de trabalho, como a falta de materiais e equipamentos necessários para a produção de saúde no território. Como proposta para garantir a promoção de ambientes saudáveis em consonância as ações em Saúde do Trabalhador, Arlete aponta a implementação de um planejamento harmonizado com a realidade concreta desses trabalhadores. “Isso implica em inserí-los nesse processo, e também implementar ações no âmbito da UBSF em consonância com o preconizado na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), quanto à garantia de infraestrutura necessária à realização das atividades”.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) representa a política considerada fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS) no âmbito da atenção básica, voltada para imprimir mudanças na reorganização e reorientação das práticas de saúde, desenvolvidas na lógica do trabalho em equipes. Nesse modelo de atenção à saúde, o processo de trabalho assume características peculiares como a definição de território de atuação e o desenvolvimento de um conjunto de ações de saúde, visando interferir no processo saúde-doença da população.

Desse modo, explica Arlete, para a realização desse conjunto de ações de saúde, o território de atuação não é só o ambiente das condições de vida e saúde da população, mas também o ambiente do processo de trabalho e saúde dos profissionais da atenção básica. “No contexto do tema da Saúde do Trabalhador, torna-se relevante compreender como os profissionais desenvolvem suas práticas nos territórios sobre os quais assumem responsabilidade sanitária”, destacou. Por isso, o interesse da aluna nessa pesquisa, cujo objetivo foi fazer um estudo de caso, no âmbito da abordagem qualitativa com utilização das técnicas da observação participante, entrevistas e grupo focal.

De acordo com a aluna, as doenças que mais afetam a população são as infecciosas e parasitárias (DIP), podendo estar relacionadas às condições inadequadas de saneamento, que combinadas com fatores ambientais favorecem a ocorrência de infecções respiratórias, em virtude da umidade presente em moradias precárias. Outros dois grupos de agravos relevantes em termos de morbidade são doenças do aparelho respiratório e neoplasias. De igual modo, as causas externas sinalizam de forma significativa como importante causa de mortalidade.

A pesquisa de campo foi realizada no período de abril a junho de 2013, desenvolvida numa área de importantes vulnerabilidades socioambientais no município de Manaus, com a presença de equipes Saúde da Família. A população da cidade corresponde a 1.802.014, ocupando um território de 11.401 km², densidade demográfica de 158,06 hab/km², sendo que o bairro Compensa, onde ocorreu o estudo, constitui o quarto mais populoso com 75.832 habitantes e o primeiro na Zona Oeste do município (IBGE, 2010).

A autora

Arlete Lima Simões é assistente social, com mestrado em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (2008), e servidora da Secretaria de Estado da Saúde (Susam) e da Secretaria de Saúde Manaus (Semsa).

Anemia e deficiência de vitamina A em crianças menores de cinco anos assistidas pela ESF no Estado de Pernambuco

Resumo: O objetivo do presente estudo foi descrever a prevalência e os fatores associados à anemia e à deficiência de vitamina A (DVA) em crianças menores de cinco anos assistidas pela Estratégia Saúde da Família. Estudo transversal, realizado em Pernambuco, Brasil, em 2006. Foram selecionadas crianças entre 6 e 59 meses de idade, que tiveram realizadas dosagens de hemoglobina e retinol sérico, perfazendo amostras de 945 e 563 crianças respectivamente. A presença de anemia foi determinada pelo nível de hemoglobina < 11 g/dL e DVA pelo nível de retinol sérico < 0,70 μmol/L. Realizaram-se análises univariada e ajustada por regressão múltipla de Poisson, utilizando modelo hierarquizado. A prevalência de anemia foi de 35%, diminuindo com o aumento do número de pessoas por cômodo, idade materna e idade da criança. No que concerne à DVA, sua prevalência foi de 16%, aumentando em locais onde o destino do lixo era inadequado e em crianças que apresentaram diarreia nos últimos quinze dias. A prevalência de anemia foi maior que o dobro encontrada para a DVA, chamando atenção a influência dos fatores ambientais sobre a DVA.

 

Autores: 

Weslla Karla Albuquerque Silva de Paula 1
Maria de Fátima Costa Caminha 1
José Natal Figueirôa 1
Malaquias Batista Filho

 

Leia artigo artigoanemia

Artigo publicado no Ciência & Saúde Coletiva, abril  2014